Enfim técnico da Holanda, Ronald Koeman terá a tarefa de mostrar que ainda existe caminho para a Laranja (VI Images) |
“Schijtbakkenvoetbal”. Como várias palavras em holandês, este vocábulo parece mesmo é um bom palavrão – e até é, pelo sentido: ao pé da letra, significa “um futebol de merda”. Foi assim que o técnico do Twente, Gertjan Verbeek, protestou contra a atuação do PSV, após seu time ser vencido pelo líder do Campeonato Holandês, há duas rodadas. Na coletiva após o jogo, Verbeek foi claro até demais: “[A atuação do PSV] foi um futebol de merda, que não é assistido com curiosidade”. Assim ele descreveu o que foi uma atuação cautelosa, preocupada com a defesa, que só avançava nos contra-ataques, sendo eficiente nas finalizações. Pelo visto, os que pensam como Verbeek terão de suportar mais vezes tal estilo tático na Holanda. Pelo que os Boeren mostram na Eredivisie e, principalmente, pelo que se espera com Ronald Koeman como técnico da seleção holandesa.
Desde a saída do Everton, ficou mais ou menos claro para imprensa e torcida que o ex-zagueiro era o principal candidato a suceder Dick Advocaat no comando da Laranja. Até porque o novo diretor de futebol profissional da seleção holandesa, Eric Gudde, trabalhou com Koeman no Feyenoord. No começo do mês passado, durante o sorteio dos grupos na Liga das Nações, Gudde já prometera o anúncio do novo treinador para o início de fevereiro. Bastou: no fim de janeiro, jornais já diziam que a federação fizera a proposta a Koeman, e que a tendência era aceitar. Na semana passada, já se debatia a formação da comissão técnica.
Finalmente, na terça desta semana, a confirmação do que até os muros da sede da federação, na cidade de Zeist, já sabiam: caberá a Koeman, cujo contrato durará até 2022, a tarefa de reconstruir a imagem altamente manchada da Oranje – na Liga das Nações, nas eliminatórias da Euro 2020 e na qualificação para a Copa do Mundo. Será difícil. Mas pelo menos, respeito a ele não falta. Primeiro, pelo que fez dentro de campo vestindo a camisa 4 laranja: 78 partidas entre 1983 e 1994, duas Euros e duas Copas no currículo - e em todas, titular absoluto da Oranje, além de capitanear a equipe no Mundial de 1994. Tudo isso, justificável pela liderança de Koeman, e pela capacidade técnica notória, tanto marcando como sendo o responsável por vários gols em bolas paradas. Em segundo, pelo respaldo adicional de ser o único nome da história do país com passagens como jogador e treinador pelo Trio de Ferro (Ajax, PSV e Feyenoord).
E a entrevista coletiva de apresentação deixou a promissora impressão de que Koeman é exatamente o tipo de treinador de que a seleção holandesa mais necessita no momento: alguém que se preocupe mais em formar um time de acordo com o que seus jogadores podem dar, e não em manter obsessivamente um ideal tático antiquado, como hoje é a “escola holandesa”. Algumas frases deixaram isso claro: “Está claro que não é por se ter bons jogadores que automaticamente se forma um bom time”. Ou: “Uma equipe precisa saber jogar em mais esquemas. Posso até jogar no 4-3-3 – aliás, ele é o esquema básico. Mas isso não significa que jogaremos assim contra a Inglaterra [no amistoso do próximo dia 23 de março, em Amsterdã, marcando sua estreia]”.
A partir daí, Koeman teorizou sobre a atual geração de jogadores: “O que temos, na Holanda? Defensores razoáveis, e gente que joga pelas pontas. O que mais? Meio-campistas. E o que nos falta? Um atacante reconhecido e respeitado mundo afora, embora tenhamos atacantes velozes. Isso precisa ser levado em conta na hora de pensar sobre um esquema tático”. Embora as teorias também tenham levado em conta a questão da vontade de defender a Oranje (“Senti falta de ver alegria ao jogar pela seleção. Ela não pode ser um lugar só de passagem”), sem dúvida nenhuma o novo comandante da Oranje se preocupa mais em melhorar a equipe, coletivamente. Outra frase exemplificou isso: “Não temos os melhores jogadores, mas podemos ter a melhor equipe”.
Se não bastasse, o último trabalho respeitável de Koeman provou isso. Na temporada 2013/14, sua última no comando do Feyenoord, uma derrota para o Ajax – 2 a 1, na 26ª rodada, em 2 de março de 2014 – praticamente afastou o Stadionclub da disputa do título. Pressionado pela torcida, vendo uma equipe frágil defensivamente, o técnico tinha pela frente um jogo potencialmente difícil: o Groningen, fora de casa. A decisão: não pestanejou em mudar o time para o 5-3-2. Tal mudança não só deu certo (o Feyenoord venceu por 2 a 0, e terminou vice-campeão), mas serviu de exemplo para a alteração tática decisiva que Louis van Gaal fez na seleção holandesa rumo à Copa do Mundo – também fundamental para a boa campanha da Oranje no Brasil. Por sinal, 2014 foi justamente citado como o padrão a ser seguido, daqui por diante. Primeiro, por Eric Gudde; depois, pelo próprio Koeman: "Aquela campanha pode servir de exemplo pelo aspecto esportivo, com a chegada às semifinais e o terceiro lugar. Mas também pode se referir ao que se viu fora de campo: todos sabiam quem era o técnico, e a menor qualidade técnica foi compensada com uma ótima performance coletiva".
Por isso, Koeman terminou otimista, por saber que pode formar uma equipe forte com o que convocará: “Olhe o que temos: laterais ofensivos, ótimos defensores no miolo de zaga, bons meias e até bons atacantes – eu vi Quincy Promes jogar com liberdade no Spartak Moscou, pela Liga dos Campeões, e fazer uns gols no Sevilla. Você tem Memphis Depay, que ainda é promissor; tem Georginio Wijnaldum no Liverpool; tem Daley Blind no Manchester United; e não nos esqueçamos das promessas do Ajax, com Donny van de Beek e Frenkie de Jong. Há o bastante para nos mantermos bem”.
E há o bastante para formar um time digno. Não para a Holanda disputar títulos, mas para fazer o que era habitual: bater ponto nas grandes competições. Foi o que escreveu o (excepcional) jornalista Pieter Zwart, na revista Voetbal International, ao defender que a Holanda precisa apostar mais no coletivo: “Seleções com uma fração do talento individual da holandesa já colheram os frutos da aposta na marcação por zona. Olhem para a Islândia, a Suécia, a Polônia. Na essência, o estilo de jogo delas é simples: deixar as outras seleções com a posse de bola, fazer duas linhas de quatro com dois atacantes na frente e deixar o campo tão pequeno quanto possível. Quando dá certo, quase todo time tem dificuldades para superá-las”.
Phillip Cocu mudou sua abordagem tática após vexames do começo da temporada. E o PSV está se dando bem (Pro Shots) |
De certa forma, tal lição foi aprendida pelo PSV já no começo da temporada, para levá-lo ao status que ele ocupa hoje: líder do Campeonato Holandês, esbanjando eficiência e regularidade a ponto de bater um recorde (ao vencer o Excelsior por 1 a 0 na quarta passada, completou 22 vitórias seguidas em casa pela Eredivisie, superando as 21 entre 1986 e 1987). Não foi fácil, já que o técnico Phillip Cocu ainda continua sendo adepto do ataque antes de tudo. “Eu sempre penso ofensivamente”, foi o que Cocu comentou à imprensa durante a intertemporada do mês passado, nos Estados Unidos.
Porém, se houve algum valor na vexatória eliminação para o Osijek, da Croácia, na terceira fase preliminar da Liga Europa, foi fazer Cocu entender: o PSV não era um time tão superior assim para ser ofensivo (aliás, houve prova especial disso aos brasileiros, que viram os Boeren sofrendo na Florida Cup para empatar contra um Corinthians ainda iniciando 2018). A partir disso, a equipe passou por leves mudanças. No meio-campo, passaram a jogar dois homens com características de mais marcação (Jorrit Hendrix e Bart Ramselaar). A defesa passou a apostar na ligação direta, a partir dos tiros de meta de Jeroen Zoet, já que nenhum dos zagueiros – seja Nicolas Isimat-Mirin, seja Daniel Schwaab – tem talento suficiente para sair jogando. Finalmente, os contra-ataques passaram a ser a tônica, aproveitando mais a velocidade de Santiago Arias, pela direita, os avanços fulgurantes de Hirving Lozano, o crescimento de Steven Bergwijn, a confiabilidade que Marco van Ginkel oferece e, após a saída de Jürgen Locadia, a reação de Luuk de Jong.
Assim o PSV tem obtido vitórias de invejável eficiência. Já venceu duas vezes com gols no ultimíssimo lance dos acréscimos (1 a 0 contra o Zwolle, na 12ª rodada, e 2 a 1 contra o Heracles Almelo, na 19ª). Periodicamente, até coloca um zagueiro a mais, com Derrick Luckassen entrando para ajudar Isimat-Mirin e Schwaab a aguentar os contragolpes adversários – sem que a equipe pare de atacar. Foi o que aconteceu no falado jogo contra o Twente. Com quatro minutos de jogo, Lozano fez 1 a 0. No segundo tempo, o PSV só chutara duas vezes a gol quando Luckassen entrou. Depois de atuar no 5-3-2, o controle do jogo foi retomado – e os Boeren arriscaram cinco vezes contra a meta. Cada vez mais elogiado, o brasileiro Mauro Júnior entrou para acelerar os contra-ataques. Num deles, aos 44 minutos do segundo tempo, Arias fez o segundo gol.
Pode até parecer irritante. Mas é como disse o lateral esquerdo Joshua Brenet: “Se os outros acham o nosso estilo de jogo chato, problema deles”. Enquanto isso, o PSV segue tranquilo na liderança do campeonato holandês. Na Oranje, Ronald Koeman preconiza a saída da “camisa-de-força” do 4-3-3. Talvez mais gente reclamará do “schijtbakkenvoetbal”. Mas por incrível que pareça, um pouco dele não fará mal ao futebol holandês.
(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 9 de fevereiro de 2018)
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