Angeliño se destaca no NAC Breda - graças à parceria com o Manchester City (Pro Shots) |
Na semana passada, a coluna mostrou que, dentro de campo, o futebol holandês aparentemente cai na real: tanto a chegada de Ronald Koeman para treinar a seleção como a liderança cada vez mais absoluta do PSV no Campeonato Holandês mostravam que o pragmatismo, no momento, está sendo a ideia que mais ganha espaço no país, diante da crise de identidade deflagrada nos anos recentes. Pois bem, fora de campo, os clubes também passam por uma mudança. Ela ainda não é profunda. Talvez nem seja necessariamente positiva. Mas começa a ficar claro: aos poucos, as agremiações profissionais do país se abrem aos investimentos estrangeiros. E tais investimentos não se devem somente a empresas, mas também a times. Dois exemplos são conhecidos no atual Campeonato Holandês.
Um deles já virou clássico: o “Vit-Chelsea”, ou melhor, Vitesse. Que nem tem relação oficial com o Chelsea. Mas que se valeu da proximidade dos seus proprietários com Roman Abramovich – primeiro, o georgiano Merab Jordania; depois, o russo Aleksandr Chigrinskiy – para se tornar paradeiro de vários emprestados de Stamford Bridge nesta década: de Nemanja Matic a Slobodan Rajkovic, passando por Tomas Kalas, Dominic Solanke, Lewis Baker, Gaël Kakuta, Bertrand Traoré... e os três atuais: o lateral direito Fankaty Dabo, o zagueiro Matt Miazga e os meio-campistas Mason Mount e Mukhtar Ali. Destes, só Ali está fora do time titular absoluto – e Mount, cada vez mais, se converte no principal meia no Vites, fazendo boas partidas e até chegando ao ataque para finalizar (já fez seis gols, só abaixo de Bryan Linssen e Tim Matavz na lista de goleadores do clube nesta temporada).
Porém, se a relação entre Vitesse e Chelsea está “apenas” muito bem apalavrada, a relação entre NAC Breda e Manchester City tem papel passado. Não bastassem os três acionistas (Wim van Aalst, Rob van Weelde e Paul Burema), todos dividindo 56 por cento das ações do clube, o clube do sul holandês se tornou um “clube-satélite” dos Citizens, membro que passou a ser do City Football Group. Assumidamente, passou a ser um entreposto de jovens que ganham tempo de jogo antes de retornarem a Manchester. E se não fosse por eles, a situação do time aurinegro poderia ser ainda pior do que o já aflitivo 15º lugar, a primeira posição acima da zona de repescagem/rebaixamento.
Basta mencionar que, da equipe titular preferencial, são quatro os emprestados pelo City ao NAC Breda. E que são justamente esses quatro os maiores destaques técnicos na equipe. Embora alguns jogadores de propriedade do clube sejam úteis, como o meio-campista Rai Vloet e o atacante Giovanni Korte, algumas respostas esclarecem o assunto. Qual é o principal goleador do time na temporada? Com 8 gols, responde “presente” o francês Thierry Ambrose. E quem mais deu passes para gol? Aqui se sobressai o lateral esquerdo espanhol José Angel Esmoris, o "Angeliño": já foram quatro bolas que saíram dos pés dele para terminarem nas redes. Quem é saudado como o jogador mais técnico pela torcida? Outro espanhol, o meio-campista Manu García. Todos eles terão de voltar ao clube inglês, tão logo a temporada termine.
No ADO Den Haag, Hui Wang personifica as vantagens e os problemas de um mecenas num clube (Pro Shots) |
Se a questão se resumisse apenas ao escambo de jogadores e a apenas um clube de propriedade estrangeira no Campeonato Holandês, seria insuficiente para se chamar de mudança real. Mas a coisa muda de figura ao se ver detidamente todos os 18 clubes que formam a Eredivisie. Tal quadro foi fornecido pela reportagem de capa da revista Voetbal International, nesta semana. Pelo menos metade das agremiações tem um acionista estrangeiro. E das restantes, as únicas três que se negam veementemente a pensar na alternativa são o Heerenveen, o Heracles Almelo... e o PSV, que nem precisa disso por já ser um clube de empresa (sim, apesar de não ter mais o nome na camisa, a Philips continua e continuará ligada financeiramente aos Boeren). No clube da Frísia, o diretor geral Luuc Eisenga apregoa: “Habitualmente, chegam sugestões [de venda] a nós, e aí explicamos que tipo de clube o Heerenveen é, e que por isso a venda está fora de cogitação”. No Heracles, como novo comandante, Jan Smit seguirá o lema bradado por seu antecessor Nico-Jan Hoogma, agora diretor técnico da federação holandesa: “Nosso clube é dos torcedores, e sempre será”.
Palavras cada vez mais distantes do que pensam os outros quinze times. Em maior ou menor grau, todos se mostram abertos a investidores do exterior. Alguns, com reservas, como os dois “médios/pequenos” que mais se destacam nesta temporada: o AZ (o diretor geral Robert Eenhoorn ponderou: “Estamos abertos a tudo, desde que caiba na visão e na cultura do clube”) e o Zwolle (mecenas do clube, o empresário Adriaan Visser comentou: “Não tenho nada contra outras formas de financiamento, desde que aconteça respeitando o clube”).
Já outros têm palavras mais conformistas. Como Hans Nijland, o comandante do Groningen: “De outro modo, como poderemos competir com o Vitesse?”. E Hai Berden, presidente do VVV-Venlo: “Prevejo que todos os clubes serão propriedade privada daqui a cinco anos. Vemos arquibancadas vazias, e se dependermos somente de nossos próprios custos, o futebol correrá riscos”. O próprio Feyenoord avalia ter mais acionistas, para abater os custos que aumentarão a partir da sonhada construção de De Nieuwe Kuip (o novo estádio, à beira do rio Maas) – de mais a mais, em 2011, quando vivia grave crise, o clube foi salvo por um conjunto de investidores/torcedores que despejaram 30 milhões de euros. Não bastasse ser o primeiro clube do país na bolsa de valores, o Ajax já tem uma pequena porcentagem de ações na mão de outros investidores.
E além de Vitesse e Zwolle, já têm seus próprios mecenas clubes como ADO Den Haag e Roda JC. Aliás, ambos expõem o lado mais perigoso dessa abertura: o clube de Haia vive na corda bamba entre o que desejam os conselheiros e o que deseja a United Vansen, empresa e acionista majoritária controlada pelo chinês Hui Wang. E o Roda JC, penúltimo colocado, viu o russo-suíço Alexander Korotaev terminar 2017 na cadeira – e já corre atrás de outro investidor que solucione sua grave crise nos cofres: o holandês de ascendência iraniana Salar Azimi, que assistiu à partida contra o Ajax, há duas rodadas.
A mudança começou fora de campo. E assim como se divide entre ficar com suas ideias táticas e ser mais flexível no jogo, a Holanda já espera a delícia de ter cofres mais cheios para tentar investir mais – e a dor de bordejar o perigo de ver vários clubes se encantando pelo primeiro bolso cheio de euros que aparece.
(Coluna originalmente publicada na Trivela, em 16 de fevereiro de 2018)
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