Mesmo com um futebol ainda amador, a seleção da Holanda estreou em Copas do Mundo atraindo relativo otimismo em 1934. A derrota frustrou tudo (Arquivo) |
Muitos jovens. Alguns bons jogadores - boa parte deles, talvez, os grandes craques da era em que o futebol da Holanda (Países Baixos) ainda era amador, e tinha uma seleção de terceiro escalão. Havia até uma música de incentivo para os 22 convocados da primeira participação da seleção masculina holandesa numa Copa do Mundo. Só não havia um nível técnico muito alto. Por isso, e pela rapidez do regulamento, a aparição da Holanda foi muito fugaz, em sua primeira Copa. Talvez até por isso, esta série histórica do Espreme a Laranja tenha alguma utilidade: para lembrar que, mesmo com desempenhos esquecíveis, a Laranja apareceu em Mundiais, sim senhor, antes de "recomeçar sua história" em 1974. E se ela estava na segunda Copa do Mundo da história, deve parte considerável disso ao principal diretor da federação dos Países Baixos.
Karel Lotsy (1893-1959) começou a colaborar com a KNVB durante os Jogos Olímpicos de 1924, em Paris. Com seu ímpeto para comandar - que, comumente, resvalava no autoritarismo -, Lotsy logo se tornou um braço-direito de Carl Hirschmann (1877-1951), antológico dirigente da entidade, um dos fundadores da FIFA. Por volta de 1927, Lotsy já tinha se tornado um "diretor sem cargo", tomando conta de tudo que se relacionasse com a seleção holandesa. No ano seguinte, foi integrante fundamental para a organização dos Jogos Olimpícos de 1928, em Amsterdã - nos quais a Holanda teve a medalha de bronze no futebol. Em setembro de 1930, Karel virou de direito o que já era de fato: diretor na federação de futebol. E finalmente, em 1931, com Carl Hirschmann precisando abandonar suas funções na federação (para socorrer suas empresas, ainda sofrendo com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929), Lotsy se converteu num comandante quase sem limites de poder na KNVB.
Polêmico e autoritário, Karel Lotsy deu algum senso de organização à seleção masculina da Holanda, no começo da década de 1930 (Arquivo) |
Se seu autoritarismo se traduzia em atitudes exageradamente críticas e exigentes com a seleção da Holanda, que vivia então em péssima fase (estava sem vencer amistosos fora de casa havia seis anos, por exemplo), se negar o direito de disputar a Copa de 1930 havia pego mal para uma nação que ajudara a fundar a FIFA, Karel Lotsy tinha tudo para usar a Laranja como um meio de fortalecer seu poder no esporte dos Países Baixos. E fez isso. Tendo em mente chegar à Copa de 1934, ele criou uma seleção permanente já em seu primeiro ano dirigindo o futebol na entidade. Tal grupo fazia períodos e mais períodos de treinos, além dos amistosos. E sair desse grupo, para o diretor, equivalia a uma traição imperdoável à nação, que contava com a seleção - ponto de vista previsível, numa época em que os populismos nacionalistas começavam a pulular pela Europa. Como o nazismo, na Alemanha - regime com o qual há até hoje acusações de colaboração por parte de... Karel Lotsy.
Fosse como fosse, de fato, no começo da década de 1930 a seleção da Holanda ganhou novo impulso. Venceu amistosos contra Dinamarca (2 a 0) e França (4 a 3), ambos fora de casa. Mesmo contra seleções europeias que eram mais fortes, como a Áustria, tinha desempenhos honrosos - diante do "Wunderteam" em que Matthias Sindelar brilhava em campo, a derrota foi "só" 1 a 0, em 1933. Além do mais, todos esses amistosos abriam caminho para alguns dos principais craques holandeses pré-1974, como o atacante Leendert "Leen" Vente (1911-1989), que estreou justamente contra a Áustria. No começo de 1934, o ano da Copa do Mundo, um amistoso contra a velha rival Bélgica, em 11 de março. E uma goleada: 9 a 3 - cinco gols de Leen Vente, dois de outra estrela que subia na Holanda: o atacante Elisa Hendrik "Beb" Bakhuys (1909-1982), de volta ao país após passagem a trabalho pelas Índias Holandesas Orientais - hoje, Indonésia, onde Bakhuys nasceu. Naquele 9 a 3, fazia sua primeira partida pela Laranja mais um atacante de destaque: Johannes "Kick" Smit (1911-1974).
E o otimismo da Holanda em sua seleção cresceu de vez em sua participação nas eliminatórias da Copa de 1934: num grupo com Bélgica e Irlanda (então chamada Estado Livre Irlandês), a Laranja venceu as duas partidas, graças a duas viradas. No primeiro jogo, em 8 de abril de 1934, no Estádio Olímpico de Amsterdã, saiu na frente da Irlanda, tomou a virada, mas partiu para uma goleada - 5 a 2. E fora de casa, contra a velha adversária Bélgica, em 29 de abril de 1934, também tomou 1 a 0, mas também virou para o triunfo (4 a 2) que a levou à primeira participação numa Copa.
"Beb" Bakhuys voltou das Índias Holandesas Orientais para ser um dos primeiros destaques da seleção da Holanda, ao lado de Kick Smit e Leen Vente (Arquivo) |
"Beb" Bakhuys marcara quatro gols nas eliminatórias - e se tornava a principal promessa de uma boa campanha holandesa. Com Kick Smit e Leen Vente também se destacando na frente, mais a relativa experiência dos meio-campistas Puck van Heel e Wim Anderiesen, a esperança aumentava ainda mais. E ela se embalava por uma música: "Wij gaan naar Rome" ("Nós vamos a Roma"), evocando a Itália, país-sede daquele Mundial.
We gaan naar Rome, we gaan naar Rome ("Nós vamos a Roma, nós vamos a Roma")
Bep Bakhuys doelpunt daar voor twee ("E Beb Bakhuys fará dois gols")
We gaan naar Rome, we gaan naar Rome ("Nós vamos a Roma, nós vamos a Roma")
En Vente neemt z'n kanjers mee ("E Vente está levando seu brilho")
Porém, o autoritarismo de Karel Lotsy desgastou a equipe antes mesmo dela ir a Roma. Tudo a partir de uma polêmica sobre o goleiro titular. Nas eliminatórias, Adri van Male e Gerrit Keizer jogaram uma partida cada um; no amistoso contra a França, último pré-Copa, Gerrit Keizer tomou cinco gols (França 5 a 4, em 10 de maio de 1934). E Lotsy, em uma coluna que mantinha numa revista, decidiu exortar o veterano Gejus van der Meulen, 30 anos, já dedicado à medicina - sempre bom lembrar que o futebol na Holanda ainda era amador. Van der Meulen sucumbiu à pressão, se integrando à delegação de convocados para a Copa. Esperando por Van Male como titular, o grupo se aborreceu com a imposição de Karel Lotsy. Aborreceu-se ainda mais ao saber que Van der Meulen tivera a permissão de levar a esposa para a viagem à Itália.
Fosse como fosse, a seleção da Holanda chegava à Copa de 1934 com algum otimismo. Num torneio com regulamento diferente das Copas atuais (era mata-mata desde o começo, sem fase de grupos, em partida única), a Suíça coubera como adversária da Laranja - adversária respeitável, mas não era a forte Itália, país-sede, nem Tchecoslováquia ou Espanha, duas das melhores seleções europeias da época. Entretanto, os suíços tinham dois destaques: os atacantes Léopold Kielholz e André Abegglen. Já haviam vencido os neerlandeses num amistoso, no ano anterior (2 a 0). E tanto Kielholz quanto Abegglen marcariam gols - um do primeiro, dois do segundo - no 3 a 2 em San Siro, partida em que a Holanda mal estreou e já foi eliminada da Copa. Kick Smit e Leen Vente ainda diminuíram, mas ficou no placar mesmo a derrota e a queda, na primeira partida dos Países Baixos em Copas, em 27 de maio de 1934.
A Holanda foi mesmo a Roma. Mas voltou rápido. Até demais, para um time que atraiu certas expectativas.
Os convocados da Holanda para a Copa de 1934
Goleiros
Gejus van der Meulen (HFC) - 1 jogo
Adri van Male (Feyenoord) - não jogou
Leo Halle (Go Ahead Eagles) - não jogou
Zagueiros
Mauk Weber (ADO Den Haag) - 1 jogo
Sjef van Run (PSV) - 1 jogo
Jan van Diepenbeek (Ajax) - não jogou
Meio-campistas
Wim Anderiesen (Ajax) - 1 jogo
Henk Pellikaan (Longa Tilburg) - 1 jogo
Puck van Heel (Feyenoord) - 1 jogo
Toon Oprinsen (NOAD Breda) - não jogou
Bas Paauwe (Feyenoord) - não jogou*
Atacantes
Frank Wels (Unitas) - 1 jogo
Beb Bakhuys (ZAC) - 1 jogo
Leen Vente (Neptunus) - 1 jogo, 1 gol
Kick Smit (HFC Haarlem) - 1 jogo, 1 gol
Joop van Nellen (DHC) - 1 jogo
Jan Graafland (HBS) - não jogou
Wim Langendaal (Xerxes) - não jogou
Kees Mijnders (DFC Dordrecht) - não jogou
Jaap Mol (KFC) - não jogou
Arend Schoemaker (Quick) - não jogou
Hermanus "Manus" Vrauwdeunt (Feyenoord) - não jogou*
Técnico: Bob Glendenning
*Embora relacionados oficialmente entre os convocados, Paauwe e Vrauwdeunt ficaram de sobreaviso na Holanda (Países Baixos). Só 20 jogadores embarcaram à Itália para a Copa do Mundo
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