domingo, 31 de julho de 2022

A Holanda nas Copas masculinas: 1974 - Apenas o (re)começo

A Holanda voltou às Copas do Mundo em 1974, de um jeito que ninguém mais esqueceu. Mas esta foto é do sofrido jogo da classificação nas eliminatórias, contra a Bélgica. Em pé: Hulshoff, Schrijvers, Mansveld, Suurbier, Neeskens e Krol. Agachados: Haan, Cruyff, Gerrie Mühren, Rep e Rensenbrink (Peter Robinson/Empics/Getty Images)

Quase tudo já foi dito e escrito sobre a campanha da seleção da Holanda na Copa de 1974. Inclusive que quase tudo já foi dito e escrito sobre a campanha da seleção da Holanda na Copa de 1974. Sendo assim, é muito difícil fazer um texto curto sobre a icônica participação da Laranja naquele Mundial - o retorno dela, vale lembrar, após 36 anos de ausência - sem citar coisas já sabidas de cor e salteado por todo mundo que conheça um pouco de história do futebol. Então, o melhor caminho é falar, principalmente, do que pouco se sabe. Do caminho que a Oranje fez antes de marcar época, num dos momentos mais marcantes da história das Copas. Mais precisamente, do que ela fez nas eliminatórias para chegar à Alemanha.

Já havia alguma expectativa pela Europa sobre o que aquela geração de jogadores poderia fazer com a camisa laranja. Afinal de contas, após as profundas mudanças por que o futebol dos Países Baixos haviam passado desde a já longínqua aparição na Copa de 1938 - Karel Lotsy já era um personagem antigo, o profissionalismo havia chegado ao esporte no país em 1954, dois anos depois surgira a Eredivisie -, os jogadores que começaram a aparecer desde os anos 1960 estavam em franca ascensão na seleção. Aos mais experientes - Wim Suurbier (1945-2020), Willem van Hanegem, Piet Keizer (1943-2017), Johan Cruyff (1947-2016) -, já se somavam nomes mais novos, como Johan Neeskens e Johnny Rep. Por clubes, todos brilhavam: é quase desnecessário lembrar que vinham da Holanda os quatro primeiros campeões europeus da década de 1970 - Feyenoord em 1969/70, Ajax nas três edições seguintes (1970/71, 1971/72 e 1972/73). 

Mas... e na seleção? A capacidade daquela geração seria colocada à prova nas eliminatórias, iniciadas em 1972, no grupo 3 da qualificação europeia, enfrentando Noruega, Islândia e Bélgica. Comandada desde 1970 pelo tcheco Frantisek Fadrhonc (1914-1981), a Laranja iria tentar a vaga na Copa com alguns nomes que não chegariam a ela. O goleiro Jan van Beveren (1948-2011), do PSV; os zagueiros Barry Hulshoff (1946-2020), do Ajax, e Aad Mansveld (1944-1991), do ADO Den Haag - então, FC Den Haag; e o atacante Theo Pahlplatz, do Twente. Bastou o primeiro jogo daquelas eliminatórias para que a Holanda mostrasse seu valor: no dia 1º de novembro de 1972, em De Kuip (Roterdã), 9 a 0 na Noruega. Simplesmente a maior goleada que a seleção masculina holandesa conseguira até então, nos 67 anos de história que tinha até ali - e o recorde duraria até 2011.

O tcheco Frantisek Fadrhonc conduziu a seleção da Holanda por todo o tortuoso caminho nas eliminatórias - e seguiria na Copa de 1974, mas subjugado a Rinus Michels (Arquivo/Fotocollectie Anefo)

Contudo, se havia alguma adversária capaz de fazer frente naquele grupo da qualificação, era a vizinha Bélgica, o rival mais conhecido, velha conhecida de eliminatórias (disputara vaga em 1934 e em 1938). Em matéria de Copas, inclusive, a tradição dos Diabos Vermelhos era bem maior àquela altura - para citar só um motivo, porque os belgas haviam jogado o Mundial de 1970. E boa parte da geração deles ainda estava firme e forte na seleção, tendo o goleiro Christian Piot, o meio-campo Wilfried van Moer e os atacantes Paul van Himst e Raoul Lambert como destaques. Além do mais, se os neerlandeses ainda começavam a campanha nas eliminatórias, os principais adversários já tinham três jogos e três vitórias - duas contra a Islândia, uma contra a Bélgica. Em suma: Holanda e Bélgica fariam jogos muito equilibrados. E começariam a provar isso em 19 de novembro de 1972: no estádio Bosuil, em Antuérpia, a Laranja foi visitante numa partida igual. Em atuações e no resultado: 0 a 0.



1972 passou, 1973 chegou, e a Holanda teve dois amistosos para respirar - uma derrota para a Áustria (1 a 0 em Viena, em 28 de março), uma vitória contra a Espanha (3 a 2 no Estádio Olímpico de Amsterdã, em 2 de maio de 1973). Justamente nesses amistosos, Frantisek Fadrhonc começou a dar chance a muitos jogadores que vinham barbarizando no antológico Ajax - o meio-campo Arie Haan e os citados Neeskens e Rep tiveram suas primeiras partidas pela Laranja justamente nesses amistosos. Mas se sabia: o que importava eram as eliminatórias da Copa. E a Holanda, embora merecesse respeito, apenas cumpria o esperado, sem impressionar. Foi assim nas duas vitórias contra a Islândia - duas goleadas, diante da seleção mais fraca do grupo 3 das eliminatórias europeias: 5 a 0 em Amsterdã, em 22 de agosto de 1973; 8 a 1 em Deventer (sim, a Islândia sequer tinha estádio capaz de receber jogos oficiais, e foi "mandante" numa cidade dos Países Baixos), uma semana depois.

O sinal de alerta ficou mais intenso para a Holanda no penúltimo jogo daquelas eliminatórias: fora de casa, em Oslo, contra a Noruega, em 12 de setembro de 1973. Com somente cinco titulares escalados que estariam na Copa (Krol, Jansen, Van Hanegem, René van de Kerkhof e Cruyff - Haan substituiu Van Hanegem aos 81'), a Laranja até saiu na frente: Cruyff fez 1 a 0 já aos sete minutos da etapa inicial. Todavia, os visitantes levaram a maior parte dos 90 minutos em ritmo lento demais, apenas administrando a vantagem. Quase tiveram o pior dos castigos: aos 77', o atacante Harry Hestad ganhou disputa de bola com o goleiro Van Beveren, e empatou o jogo em Oslo. Ali a Holanda poderia perder pontos que a tirariam da Copa de 1974. Mas não os perdeu: a três minutos do fim, Cruyff ajeitou, e o zagueiro Hulshoff invadiu a área e chutou para o 2 a 1 salvador. 


Um amistoso para recuperar fôlego no meio do caminho (1 a 1 contra a Polônia - outra seleção que faria sucesso na Copa de 1974 -, em Roterdã, em 10 de outubro de 1973), e um mês e oito dias depois, chegou o momento. Estádio Olímpico de Amsterdã, 18 de novembro de 1973, um domingo. Empatadas em pontos (9) no grupo 3 das eliminatórias, Holanda e Bélgica fariam a "final" pela vaga na Copa, na última rodada. A Laranja só se aliviava por ter saldo maior de gols do que os Diabos Vermelhos - +22 a +12 -, mas convinha não abusar da sorte: afinal, uma vitória dos visitantes, e seriam eles os classificados, sem nem repescagem para dar uma "segunda chance".

O tempo foi passando em Amsterdã. O 0 a 0 seguia no placar, enervando o time; enervando Frantisek Fadrhonc, no banco; enervando toda a torcida que lotava o Estádio Olímpico. Até que, justamente no último minuto, uma falta foi marcada, na esquerda. Cobrada para a área, a defesa holandesa fez a linha de impedimento. Mas à direita da grande área, o belga Jan Verheyen estava a postos - e completou para o gol. Bola na rede. 1 a 0. Poderia ser o gol da Bélgica na Copa de 1974, o gol que frustraria o Reino dos Países Baixos, com aquela geração esplendorosa de jogadores. Mas não foi: o juiz búlgaro Pavel Kazakov anulou o gol, alegando impedimento de Verheyen. Acréscimos dramáticos depois, a partida acabou 0 a 0. Alegria no Estádio Olímpico de Amsterdã: ambas as seleções ficaram com dez pontos, mas pelo maior saldo de gols, a Holanda voltava a uma Copa do Mundo, após 36 anos. Por trás do que a Oranje faria no Mundial, porém, ficou uma dúvida até hoje esquecida: Verheyen estava mesmo impedido?


Mesmo classificada, todavia, a Holanda sabia: era preciso que algo mudasse, para que sua seleção tivesse alguma chance de boa campanha na Copa. Mesmo respeitado pelo grupo, mesmo com histórico no futebol holandês, Frantisek Fadrhonc não atraía a menor confiança sobre suas capacidades para treinar a seleção. Em março de 1974, então, a federação decidiu: Fadrhonc seguiria na comissão técnica, mas seria "rebaixado" a supervisor técnico, apenas auxiliando o novo nome que chegaria. Novo nome que, na verdade, era um velho conhecido de vários daqueles jogadores: desde 1971 treinando o Barcelona, Marinus Hendricus Jacobus Michels, o Rinus Michels (1928-2005), viria para acumular o comando barcelonista ao da seleção.

E Michels decidiu mudar boa parte do que se via no time. Mas eram apostas, e ninguém saberia se elas teriam êxito. Pelo visto no amistoso contra a Áustria, estreia de Michels no comando (1 a 1, 27 de março de 1974, em De Kuip), não teriam. Ironia das ironias, um jornal estampou na manchete pós-jogo: "A Laranja não é uma unidade". A goleada contra a Argentina, já na reta final de preparação (4 a 1 em Amsterdã, em 26 de maio de 1974), amenizou o clima, mas as dúvidas só cresciam: apostar em Jan Jongbloed, que era goleiro mais seguro com os pés do que com as mãos e não jogava na seleção desde 1962, como titular? Apostar em Arie Haan, um meio-campo, recuado para a zaga? Apostar em Wim Rijsbergen, jovem zagueiro que só estreou pela seleção no último amistoso antes da Copa - 0 a 0 contra a Romênia, em De Kuip, em 5 de junho de 1974? Apostar que a inteligência tática de boa parte dos titulares saberia entender o "Futebol Total" que só os do Ajax conheciam melhor?

Rinus Michels apostou. Deu muito mais certo do que a própria Holanda poderia imaginar. 

Na estreia avassaladora contra o Uruguai, quando Pedro Rocha, meio-campista da Celeste, afirmou que a partida foi uma das poucas vezes em que, mesmo adulto, ele quis gritar por socorro da mãe; nos 4 a 0 antológicos sobre a Argentina, já na segunda fase; nos 2 a 0 sobre o Brasil, que levaram a Holanda à final, quando um começo difícil foi superado para a vitória no segundo tempo; e até na derrota para a Alemanha, na final, a maior dor que o futebol holandês já sentiu.

E o texto termina aqui, neste (re)começo da história do Reino dos Países Baixos numa Copa do Mundo. Já prometendo um especial, como se deve, em 2024, quando aqueles sete jogos que abalaram o mundo do futebol completarão 50 anos.

Porque um texto só, como este, não dá conta de dizer o tamanho do terremoto que a Holanda de 1974 provocou no futebol mundial.

Estes 22 convocados para a Copa de 1974 merecem um texto só para eles (ANP Archive)

Os convocados da Holanda para a Copa de 1974

Goleiros
8-Jan Jongbloed (FC Amsterdam) - 7 jogos, 3 gols sofridos
18-Piet Schrijvers (Twente) - não jogou
21-Eddy Treijtel (Feyenoord) - não jogou

Defensores
20-Wim Suurbier (Ajax) - 7 jogos
12-Ruud Krol (Ajax) - 7 jogos, 1 gol, 1 gol contra
17-Wim Rijsbergen (Feyenoord) - 7 jogos
5-Rinus Israël (Feyenoord) - 3 jogos
4-Cornelius "Kees" van Ierssel (Twente) - não jogou
19-Pleun Strik (PSV) - não jogou
22-Harry Vos (Feyenoord) - não jogou

Meio-campistas
14-Johan Cruyff (Barcelona-ESP) - 7 jogos, 3 gols
13-Johan Neeskens (Ajax) - 7 jogos, 5 gols
2-Arie Haan (Ajax) - 7 jogos
3-Wim van Hanegem (Feyenoord) - 7 jogos
6-Wim Jansen (Feyenoord) -7 jogos
7-Theo de Jong (Feyenoord) - 3 jogos, 1 gol
10-René van de Kerkhof (PSV) - 1 jogo
11-Willy van de Kerkhof (PSV) - não jogou

Atacantes
15-Robert Rensenbrink (Anderlecht-BEL) - 6 jogos, 1 gol
16-Johnny Rep (Ajax) - 7 jogos, 4 gols
9-Piet Keizer (Ajax) - 1 jogo
1-Ruud Geels (Club Brugge-BEL) - não jogou

Técnico: Rinus Michels

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