sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O Brasil x Holanda de 1989: sobre expectativa e realidade

Van Breukelen cai lamentando, Romário comemora: Careca tinha acabado de fazer o gol da vitória do Brasil, num amistoso contra a Holanda que poderia ter sido muito mais (Arquivo)

Nos idos de 1989, um amistoso entre as seleções de Brasil e Holanda (Países Baixos) era de causar ansiedade em quem acompanhasse futebol. Ainda mais no final daquele ano. Também, pudera. Tratar-se-ia - bela mesóclise - do encontro entre o campeão sul-americano e o campeão europeu daquela época. De um lado, Ronald Koeman, Frank Rijkaard, Ruud Gullit, Marco van Basten e companhia bela; do outro, Careca, Romário, Bebeto, Branco, Taffarel e outra companhia não menos capacitada. Essa era a expectativa. A realidade do amistoso ocorrido há exatos 35 anos, para celebrar os 100 anos de fundação completados então pela KNVB (Koninklijk Nederlandse Voetbalbond, a federação holandesa), com vitória brasileira (1 a 0), foi um pouco diferente.

E foi diferente, principalmente, pelo lado da Laranja. Em primeiro lugar, porque o time neerlandês já não brilhava como na Euro 1988. O técnico Thijs Libregts enfrentava dificuldades no relacionamento com os jogadores - seria demitido antes mesmo da Copa de 1990. Um pouco por isso, um pouco pela autossuficiência dos jogadores, a campanha nas eliminatórias da Copa foi inferior ao que se esperava: mesmo com a classificação garantindo a volta da Oranje a um Mundial, após 12 anos de ausência, ela marcou menos gols na qualificação do que a Alemanha Ocidental, adversária de grupo (e futura campeã mundial). Para completar, vários dos destaques holandeses acabariam ausentes do amistoso em De Kuip, o estádio do Feyenoord. 

Em primeiro lugar, Ruud Gullit ficaria fora de qualquer maneira: a "Tulipa Negra" se recuperava de uma cirurgia no joelho, que perturbaria até sua participação na Copa do Mundo. Também por cirurgia no joelho, o atacante (ponta) Gerald Vanenburg seria mais um ausente. Marco van Basten e Frank Rijkaard até foram convocados, mas três dias antes do amistoso, disputaram pelo Milan a final do Mundial Interclubes, contra o Atlético Nacional colombiano. Final difícil, mas vencida (Milan 1 a 0, na prorrogação, gol marcado a um minuto do fim), a federação esperava que a dupla fosse liberada pelo clube italiano - mas, até obviamente, o Milan censurou, e os dois foram desfalques. No caso de Ronald Koeman, se dependesse de Johan Cruyff (técnico do Barcelona, onde Koeman jogava), o zagueiro também teria de ficar no clube. Por fim, Koeman foi liberado, mas só jogaria o primeiro tempo. 

Já que não era possível contar com Gullit, nem com Rijkaard, nem com Van Basten, a Holanda teve estreantes contra o Brasil: Laamers (à esquerda) e Sturing, por exemplo (Arquivo ANP)

De todo modo, Thijs Libregts usaria mais o jogo para testar novidades, como o lateral direito Edward Sturing e o atacante Bart Latuheru, ambos do Vitesse, ambos convocados pela primeira vez. Outro estreante era o meio-campista Adri van Rooy, do Antuérpia-BEL. Que motivou até uma gafe: Van Rooy já tinha agendada uma operação na virilha, o Antuérpia cobrou que a federação bloqueasse a convocação, e Van Rooy foi liberado (nunca mais voltaria a ser convocado). De quebra, mais dois seriam dispensados pelo mesmíssimo caso (operação na virilha): o meio-campo Henk Fräser e o atacante Pieter Huistra. Para repor a lacuna do corte deste, aliás, foi chamado outro atacante: o ponta-esquerda Frank Berghuis, do Volendam, pai de Steven Berghuis, atual atacante do Ajax.

Para o Brasil, que nunca tinha vencido a Holanda (dois jogos oficiais e duas derrotas até ali), também haveria cansados. Mais precisamente, dois: Bebeto e Ricardo Rocha. Se do lado europeu, o Milan disputara a final do Mundial Interclubes, o lado brasileiro teve a final do Campeonato Brasileiro, em 16 de dezembro, sábado anterior, com um nome de cada lado - Bebeto pelo Vasco (que seria campeão), Ricardo Rocha pelo São Paulo. Ambos seriam os únicos liberados para viajarem aos Países Baixos: Mazinho, lateral esquerdo vascaíno e da Seleção, também chegou a ser liberado, mas o clube da Colina negou que a CBF o convocasse, momentos antes da viagem. Ainda assim, a impressão brasileira era de otimismo. Quando nada, porque o título da Copa América tinha minimizado bastante as desconfianças sobre o trabalho de Sebastião Lazaroni à frente da Seleção - incluindo suas novidades, como jogar com três zagueiros, algo (muito) incomum no futebol brasileiro da época. Além do mais, em outubro, o Brasil já vencera outro amistoso badalado naquele ano: 1 a 0 na Itália, sede da Copa-1990, em Bologna.

Além do mais, 13 dos 16 convocados brasileiros (lista abaixo) já tinham trajetória elogiada em clubes europeus. Bastava citar Careca, só abaixo de Maradona em importância no badalado Napoli, campeão da Copa da UEFA naquele 1989 - também contando com o meio-campo Alemão. Ou Dunga, já então estabilizado na Fiorentina e na Seleção. Ou Mozer, bem no Olympique de Marselha francês, que teria sua chance como líbero entre os três zagueiros, já que Mauro Galvão (titular sob Lazaroni, na maioria das vezes) estava machucado. Ou alguns reservas, como o zagueiro Júlio César (elogiado na Copa de 1986, convocado pela primeira vez por Lazaroni, atuava pelo Montpellier-FRA, e iria para a Juventus no ano seguinte) e o meio-campo Geovani (que tivera chances aqui e ali na Seleção, fora o destaque no torneio olímpico de Seul-1988, e estava no Bologna-ITA). Ou... Romário, a grande estrela justamente do Campeonato Holandês naquela época, pelo PSV. Aliás, Romário elogiou um adversário holandês que era seu colega de clube em Eindhoven: o atacante Juul Ellerman. "É um craque".

Entre tantos brasileiros jogando no exterior em 1989, Romário era o mais marcante do amistoso. Também, pudera: brilhava no PSV (Jeroen van Bergen/Soccrates Images)

Antes do jogo, Sebastião Lazaroni ansiava, ao Jornal do Brasil, querendo que Van Basten e Rijkaard jogassem: "Os dois são estrelas no clube e na seleção. Quero ver como nossa defesa cerca o caminho deles. No último jogo que fizemos contra o Milan [empate em 0 a 0, amistoso em junho de 1989], Mozer acabou com Van Basten. Quero ver Mozer novamente contra ele". Viagem feita para terras holandesas, as baixas temperaturas - Roterdã teve temperatura de dois graus positivos - preocupavam Lazaroni, que lembrou experiência anterior com frio, num amistoso do Flamengo, que treinava, contra a Fiorentina ("Com dez minutos, já perdíamos de 3 a 0. Depois reagimos, fizemos dois gols, mas não houve como empatar"). Por isso, sua escalação traria Dunga e Alemão para proteger o meio-campo. E Lazaroni elogiava a Holanda para justificar a cautela: "É uma seleção forte, técnica, criativa e que marca muito bem. Está no mesmo nível de 1974".

De todo modo, após um longo pré-jogo (incluiu até cumprimentos dos jogadores das duas equipes à rainha Beatriz, monarca dos Países Baixos na época), o começo da partida em De Kuip chamou mais a atenção pela placa de propaganda da Opel que mencionava Romário (a fabricante de carros perguntava "Romário, hoe bevalt je nieuwe Opel?" - em holandês, "Romário, o que achou do seu novo Opel?") do que pelo nível técnico. Se alguma equipe chamou mais a atenção, foi o Brasil. Primeiro, pelos vários avanços de Jorginho na lateral direita. Depois, pelo entrosamento do ataque - que causou as primeiras chances, como aos 6', num chute cruzado de Careca, para fora, após passe de Romário. Essas duas características vistas em De Kuip também se fizeram notar aos 24', quando Jorginho cruzou, Careca tentou completar para o gol, mas chegou atrasado. 

A placa de publicidade que evocava Romário: "O que achou do seu novo Opel?" (Reprodução)

No meio-campo, a Holanda já desfalcada sofreu ainda mais: aos 17', Ellerman se machucou ao ser atingido por Dunga, tentou seguir por mais alguns minutos, mas não aguentou e teve de dar lugar a Aron Winter, tornando o meio mais defensivo. Do lado holandês, perigo só ocorreu aos 37': Berghuis chutou cruzado, Taffarel soltou a bola na área, e Mozer afastou. Mas a última chance brasileira, aos 41', pode ser considerada até "premonitória". Afinal, Branco bateu falta de fora da área, e o goleiro Hans van Breukelen rebateu forte, meio no susto. Uma falta de Branco, contra a Holanda (Países Baixos). Cinco anos depois, seria exatamente assim que sairia o gol da vitória brasileira, por 3 a 2, no marcante jogo entre ambas, pelas quartas de final da Copa de 1994.

Antes do intervalo, Pelé (comentando o jogo na transmissão da TV Globo), até alertou que, para o gosto dele, o Brasil tinha "atacado demais pela direita". Ainda assim, a impressão da atuação brasileira tinha sido melhor do que a da holandesa. Melhoraria ainda mais no segundo tempo. Porque, em que pese o começo da chuva em Roterdã, a substituição de Ronald Koeman (que iniciava todas as saídas de bola holandesas) fez a qualidade pequena da Laranja naquele amistoso cair ainda mais. E logo após uma tentativa de Romário, aos 51', após falta cobrada por Branco, surgiu o gol: aos 54', Dunga acelerou a jogada com um lançamento para Jorginho. O lateral direito cruzou, e Careca cabeceou no contrapé de Van Breukelen para o 1 a 0 brasileiro.

Foi, praticamente, o último lance de emoção no amistoso. Mesmo com as entradas de alguns nomes importantes, como John van't Schip e Danny Blind, a Holanda seguiu mostrando pouco em campo, vitimada por tantos desfalques. O Brasil, mesmo sem pressionar demais, teve mais atacantes entrando (Bebeto e Muller) e até teve chances para ampliar (aos 75', Bebeto chutou de fora da área, forçando a defesa de Van Breukelen). Chegou à vitória que ampliou ainda mais o otimismo com que a Seleção terminou 1989 rumo à Copa: na edição do dia seguinte, em sua coluna no jornal O Globo, Juca Kfouri comentou que "o tetra está tão perto que dá até medo".

Ainda assim, a impressão tinha sido de um jogo monótono. A opinião mais frequente era citada no Jornal do Brasil, também de 21 de dezembro de 1989: "Todos afirmaram que, estivesse a Holanda com seu time completo, mesmo com o frio, as duas equipes teriam realizado um dos melhores jogos do ano". Mas a expectativa tinha se chocado com a realidade: os machucados e os não liberados tinham inviabilizado isso. E as duas seleções decepcionariam na Copa de 1990. Só que dessa realidade ninguém tinha como saber ainda...


(Os melhores momentos de Brasil 1x0 Holanda, amistoso, na transmissão da TV Globo, com a narração de Galvão Bueno, e os comentários de Pelé e Arnaldo Cezar Coelho. Postado no YouTube por Flávio Baccarat)

FICHA DO JOGO

Holanda 0x1 Brasil

Data: 20 de dezembro de 1989
Local: De Kuip (Roterdã)
Árbitro: Werner Föckler (Alemanha Ocidental)
Gol: Careca, aos 54'

BRASIL
Taffarel; Aldair (Júlio César, aos 46'), Mozer e Ricardo Rocha; Jorginho, Dunga (Silas, aos 74'), Alemão, Valdo e Branco; Romário (Bebeto, aos 58') e Careca (Müller, aos 74'). Técnico: Sebastião Lazaroni
 
HOLANDA
Hans van Breukelen; Edward Sturing, Ronald Koeman (Martin Laamers, aos 46') e Adri van Tiggelen; Berry van Aerle, Jan Wouters (Danny Blind, aos 69'), Rob Reekers e Frank Berghuis (John van't Schip, aos 58'); Bart Latuheru, Wim Kieft (John van Loen, aos 78') e Juul Ellerman (Aron Winter, aos 21'). Técnico: Thijs Libregts

OS CONVOCADOS

BRASIL (em negrito, os cortados)
Goleiros: Taffarel (Internacional) e Zé Carlos (Flamengo)
Defensores: Jorginho (Bayer Leverkusen-ALE), Aldair (Benfica-POR), Mozer (Olympique de Marselha-FRA), Ricardo Rocha (São Paulo), Júlio César (Montpellier-FRA), Branco (Porto-POR), Mazinho (Vasco) e Dida (Palmeiras)
Meio-campistas: Dunga (Fiorentina-ITA), Alemão (Napoli-ITA), Valdo (Benfica-POR), Silas (sem clube na época) e Geovani (Bologna-ITA)
Atacantes: Careca (Napoli-ITA), Romário (PSV-HOL), Bebeto (Vasco) e Muller (Torino-ITA)

HOLANDA (em negrito, os cortados)
Goleiros: Hans van Breukelen (PSV) e Joop Hiele (Feyenoord)
Defensores: Berry van Aerle (PSV), Edward Sturing (Vitesse), Danny Blind (Ajax), Ronald Koeman (Barcelona-ESP), Frank Rijkaard (Milan-ITA), Rob Reekers (Bochum-ALE) e Adri van Tiggelen (Anderlecht-BEL)
Meio-campistas: Jan Wouters (Ajax), Aron Winter (Ajax), Adri van Rooy (Antuérpia-BEL), Martin Laamers (Vitesse) e Henk Fräser (Roda JC)
Atacantes: Marco van Basten (Milan-ITA), Wim Kieft (PSV), Frank Berghuis (Volendam), Bart Latuheru (Vitesse), Juul Ellerman (PSV), John van't Schip (Ajax) e John van Loen (Roda JC)

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