sábado, 25 de janeiro de 2020

Rensenbrink: craque, mesmo sem o gol

Esta foto de Rensenbrink foi usada para homenagear Cruyff quando ele morreu. Agora, é usada apropriadamente, para celebrar o que Rensenbrink fez em campo (Heinz Wieseler/Picture Alliance/Getty Images)

No triste 24 de março de 2016 em que o futebol dos Países Baixos (e do mundo) perdeu Johan Cruyff, ficou marcada uma gafe do jornal inglês The Guardian: para estamparem a capa do caderno de esportes repercutindo o falecimento de Cruyff, havia uma foto de um holandês driblando um adversário na Copa de 1974, mas não era o camisa 14. Era outro jogador - de fato, cuja fisionomia lembrava levemente a de JC. Era o atacante Pieter Robert "Rob" Rensenbrink, um dos tantos destaques daquela geração que fez a seleção da Holanda (Países Baixos) mudar de patamar para sempre no futebol mundial. De todo modo, neste sábado, 25 de janeiro, é hora das homenagens serem feitas e das memórias prantearem Rensenbrink, falecido aos 72 anos, vítima da AMPE (Atrofia Muscular Progressiva Espinhal) com a qual já convivia há alguns anos.

Rensenbrink não teria espaço na ponta-esquerda dos grandes holandeses. Restou a Bélgica, onde fez história em Club Brugge e no Anderlecht da foto (Arquivo)
A chance veio na Bélgica

Nascido em Amsterdã, Rensenbrink foi um destaque, mas desde o começo mostrava natureza mais discreta do que a de vários dos seus colegas de geração neerlandeses. Basta dizer que, enquanto tantos dos congêneres surgiam para o futebol na base do Ajax, Rensenbrink começou a jogar profissionalmente no outro clube que Amsterdã (sua cidade natal) tinha na época, o DWS Amsterdam - hoje amador. Iniciado na equipe principal do DWS em 1965, o atacante alto e magro começou a saltar aos olhos na temporada 1967/68 do Campeonato Holandês: marcou 10 gols. Exatamente pelo bom desempenho, foi chamado pela primeira vez para a seleção holandesa, pelo técnico Georg Kessler: estreou pela Laranja em 30 de maio de 1968, num amistoso contra a Escócia, terminado sem gols.

Seguindo bem no DWS, obviamente Rensenbrink chamou a atenção dos clubes maiores do país. Porém, já não havia lugar para ele entre os titulares: o Ajax tinha Piet Keizer e o Feyenoord tinha Coen Moulijn, dois outros grandes nomes do futebol holandês - o Feyenoord até negociou, mas a conversa não foi adiante. A chance para Rensenbrink só se abriu mesmo na Bélgica: o técnico Frans de Munck se foi para o Club Brugge em 1969, e levou Rensenbrink a tiracolo, comprado pelo clube da cidade de Bruges por 450 mil florins - hoje, 204 mil euros.

Já bastou para vir o primeiro título da carreira - a Copa da Bélgica, na temporada 1969/70. E para os bons desempenhos virem em campo: no primeiro ano, foram 10 gols em 27 partidas no Campeonato Belga. Em 1970/71, números ainda melhores: 28 jogos, 14 gols de Rensenbrink. Começava a fazer fama sua habilidade na ponta-esquerda, sua precisão nos pênaltis (só perdeu duas cobranças em toda a carreira), sua rapidez e controle da bola. Qualidades que fizeram com que o técnico húngaro Lajos Baroti se impressionasse, após vê-lo jogando contra o Ujpest que treinava: Baroti apelidou Rensenbrink de "Slangemens", o Homem-Cobra. 

De fato, Rensenbrink era tão magro, tão rápido e tão insinuante com a bola nos pés que se movia como uma cobra, rápido e rasteiro em campo. E nada poderia provar mais sua habilidade do que ser contratado pelo arquirrival do Club Brugge na Bélgica: em 1971, o Amsterdammer chegou ao Anderlecht. Nos Mauves, novamente brilhou na primeira temporada: foi o destaque supremo da dupla coroa da equipe de Parc Astrid no futebol belga (títulos no campeonato e na copa nacionais), e ainda foi o goleador da liga, com 16 gols. Mais uma temporada, e se o Anderlecht decepcionou no Campeonato Belga - foi só sexto colocado -, garantiu o bicampeonato na copa. E em 1973/74, o Anderlecht levaria o título da liga, com 20 gols de Rensenbrink em 29 jogos.

Enquanto isso, na seleção...

O destaque supremo podia ir até para jogadores de Ajax e Feyenoord, e Rensenbrink pode até ter demorado a voltar à seleção da Holanda: ficou três anos sem ser convocado, após a mudança para a vizinha Bélgica. Porém, aos poucos, o sucesso pelo Club Brugge e pelo Anderlecht foi reconhecido. Em 1973, ele retornou à Laranja, em dois jogos. E justamente em 1974, ano da Copa do Mundo, com a troca de técnicos no começo do ano, Rinus Michels passou a valorizá-lo mais do que o tcheco Frantisek Fadrhonc, seu antecessor. Rensenbrink já voltou para os primeiros amistosos dos Países Baixos naquele 1974, contra a Áustria (empate por 1 a 1) e Argentina (na goleada por 4 a 1, em 26 de maio, ele marcou seu primeiro gol pela seleção). Já bastou para que ganhasse status de titular na equipe. 

Assim começou a Copa do Mundo. E justamente naquele cenário em que a Holanda jogou sete partidas e impressionou o mundo para sempre, Rensenbrink provou sua importância. No ataque, enquanto Cruyff era o gênio tático da equipe e Johnny Rep se responsabilizava pelos gols, Rensenbrink dava a habilidade na frente. Só marcou um gol na Copa, no 2 a 0 contra a Alemanha Oriental, na segunda fase. Mas brilhou muito, pelo menos, em dois jogos: no 4 a 1 sobre a Bulgária, na fase de grupos, e nos 4 a 0 sobre a Argentina, também na segunda fase. Só não foi mais importante pela lesão sofrida durante o jogo contra o Brasil, que o tirou de campo durante aquele jogo - na final contra a Alemanha, começou jogando, mas saiu no intervalo.

Rensenbrink (à direita) simbolizou o grande momento da história do Anderlecht (AFP)
O símbolo do Anderlecht campeoníssimo

De volta ao Anderlecht, Rensenbrink passou novamente longo tempo sem jogar pela seleção: só um jogo em 1975, por exemplo. Tudo bem: pelo Anderlecht, o brilho do "Homem-Cobra" era cada vez maior. Junto do compatriota Jan Mulder, ele simbolizava no ataque um período áureo do clube roxo-e-branco da Bélgica. Veio mais uma conquista da Copa da Bélgica, em 1974/75. E na temporada seguinte, o auge: 1975/76 traria não só outro bicampeonato na Beker van België, mas também seria a temporada do título do Anderlecht na Recopa Europeia. Novamente, Rensenbrink brilhou em jogo importante: nos 4 a 2 sobre o West Ham-ING, na final, marcou dois gols - um de pênalti, com a precisão de sempre - e ainda fez o lançamento para François van der Elst marcar o quarto gol daquela final.

Por falar em partidas importantes, elas causavam até uma crítica a Rensenbrink. Tanto na Bélgica quanto na Holanda, o que se dizia era que o atacante se destacava em momentos decisivos, mas negava fogo nos jogos "normais". Ou seja, era irregular. Mas ao contrário do que podia ocorrer, ele mesmo reconhecia: preferia mostrar sua classe nos jogos decisivos. E seu técnico no Anderlecht, Raymond Goethals, confirmava, com uma frase que foi tão descritiva de seu talento quanto o apelido de "Homem-Cobra": "Nos jogos de gala, Robbie sempre vem de smoking".

Teria mais chances de demonstrar isso, em uma sequência que consolidou aquele Anderlecht na história. Em 1976/77, veio a Supercopa da Europa - e nos 4 a 1 sobre o Bayern de Munique, Rensenbrink marcou dois gols no título dos Mauves. A segunda final seguida de Recopa Europeia, ainda naquela temporada, foi perdida - para o Hamburgo, da Alemanha. Mas na temporada 1977/78, outra vez o Anderlecht falou alto, e outra vez Rensenbrink brilhou na hora apropriada: mais um título (contra o Austria Wien), com dois gols do neerlandês na decisão. De quebra, outra Supercopa da Europa, ganha contra o Liverpool. 

Com tudo isso, foi previsível o resultado de uma eleição em 2007: num júri formado por gente do próprio futebol da Bélgica, Rensenbrink foi escolhido o melhor jogador estrangeiro a já ter atuado no país. Justo. Afinal de contas, foi ele o símbolo do momento em que o Anderlecht apareceu para o mundo.

Rensenbrink fez quatro gols na Copa de 1978, foi o grande nome na campanha da Holanda... mas ficou faltando o gol na final (VI Images)

Copa de 1978: ele foi o craque da Holanda

Àquela altura, na seleção, Rensenbrink ainda não ocupava todo o destaque, porque Cruyff ainda fazia parte dela. Com isso, teve atuação discreta na turbulenta participação da Laranja na Euro 1976 (ano em que mais atuou pela Oranje: seis partidas, incluindo as duas na Euro, então jogada em formato diferente). Em 1977, "Robbie" apareceria ainda menos fardando laranja: só duas partidas. Mas 1977 também foi o ano da despedida de Cruyff na Holanda. 

E Rensenbrink chamou o destaque para si em 1978. Começou como titular já nos amistosos pré-Copa, contra Israel e Áustria. E como titular foi ao Mundial na Argentina - agora jogando como atacante mais centralizado, até criando jogadas se necessário (além, claro, de também participar do jogo pela ponta-esquerda). Mesmo com uma primeira fase problemática da Holanda, ele brilhou: três gols, dois nos 3 a 0 da estreia holandesa contra o Irã, mais um, de pênalti, na derrota por 3 a 2 para a Escócia. E mesmo o mau resultado não tirava o marco que ele conseguira com aquela cobrança contra os escoceses: ao mandar o pênalti para as redes, Rensenbrink marcava o milésimo gol da história das Copas naquele 11 de junho de 1978.

Veio a segunda fase da Copa, a Holanda cresceu com algumas mudanças, e Rensenbrink teve o desempenho turbinado: já marcou gol nos 5 a 1 sobre a Áustria, se destacou na armação de jogadas, chegou à final contra a Argentina já considerado um dos melhores jogadores daquele torneio, acontecesse o que acontecesse. E quase aconteceu o lance que faria dele uma lenda. Último minuto do tempo normal, naquela tensa final no Monumental de Núñez. Holanda e Argentina já empatavam por 1 a 1. Um lançamento longo de Ruud Krol para a área, Rensenbrink foi dividir a bola com o zagueiro Jorge Olguín e o goleiro Ubaldo Fillol... e mandou o chute na trave. A bola do jogo estava perdida, e a Argentina seria campeã na prorrogação.


Bem escreveu o jornalista inglês David Winner, em seu Brilliant Orange: foi a diferença entre se tornar imortal e ser esquecido pela história. Mas o discreto Rensenbrink se mostrava tranquilo com aquela chance perdida. Aliás, disse a Winner: "Não foi uma chance real. Eu fui bem ao acertar a trave. A bola estava quase na linha do gol. Eu não tinha espaço para dominar a bola e entrar [na pequena área]. Tinha um marcador na minha frente, eu precisava chutar de primeira. O goleiro me deixou um espaço curto. Às vezes, penso que teria sido melhor se eu errasse por muito, porque aí não falariam tanto disso. Se fosse uma grande chance, eu sofreria até hoje. Mas realmente era impossível fazer o gol". 

Restou o consolo de ser o "Chuteira de Bronze" daquela Copa. E de reconhecer, mesmo humilde: "Joguei melhor em 1978 porque Cruyff não estava à frente, mas também porque eu estava quatro anos mais experiente".

Deixando a discrição só por um momento

Aquela bola na trave também marcou o início do inverno discreto de sua carreira. Em 1979, só duas partidas pela seleção, nas eliminatórias da Euro, encerrando nelas 11 anos de história com a Laranja, com 46 jogos e 14 gols. Em 1980, Rensenbrink deixou o Anderlecht para ser mais um holandês a ganhar dinheiro e reconhecimento no futebol dos Estados Unidos, passando um ano no Portland Timbers. Em 1981, retornou à Europa, indo jogar no Toulouse, motivado pelo defensor Gilbert van Binst, seu colega de Anderlecht, que estava no clube francês. Mas uma lesão no joelho, em 1982, fez com que Rensenbrink decidisse ser aquele o ponto final da carreira.

Após a carreira, Rensenbrink viveu tranquila e discretamente em Oostzaan, afastado do futebol (Pim Ras)

E ao contrário de vários dos colegas de geração, foi praticamente o ponto final do "Homem-Cobra" no futebol. Depois dali, ele voltou para viver o resto de seus dias na cidade de Oostzaan, com a família. No futebol, só "brincou" um pouco como treinador do OSV, clube amador em que começara a jogar. Com um bom dinheiro poupado, tinha a pesca como seu passatempo favorito, como falou a David Winner em 2000: "Gosto de pescar, só não faço isso todo dia. Tenho um jardim. Tenho uma casa. Tenho uma família. Eu vivo, eu me divirto. Prefiro viver quieto". Continuava assistindo a futebol, mas gozava dos comentaristas: "Eles falam [de futebol] como se fosse um assunto acadêmico, mas é um jogo simples, no fim. Com todas as teorias, no fim é só ter onze jogadores bons e um técnico que saiba colocá-los no lugar certo".

Mas às vezes, deixá-lo no canto dele era difícil. Como em 2004, quando Pelé o incluiu na sua polêmica lista (não nesse caso) de 125 melhores jogadores da história do futebol, feita para a FIFA. Como em 2015, quando revelou a atrofia muscular progressiva e incurável que o vitimaria - ao jornal Algemeen Dagblad, até fez humor negro ao brincar, em 2017: "Ainda estou vivo, mas... primeiro [Coen] Moulijn, depois [Piet] Keizer. Serei o próximo, né?". Foi. E neste 25 de janeiro de 2020, o futebol holandês chora a sua morte dando o reconhecimento amplo que Pieter Robert Rensenbrink teve discretamente em vida. E sem errar na foto.

Pieter Robert "Rob" Rensenbrink
Data de nascimento: 3 de julho de 1947, em Amsterdã
Clubes: DWS Amsterdam (1965 a 1969), Club Brugge-BEL (1969 a 1971), Anderlecht-BEL (1971 a 1980), Portland Timbers-EUA (1980 a 1981) e Toulouse-FRA (1981 a 1982)
Seleção: 46 jogos e 14 gols, entre 1968 e 1978

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