Jongbloed ganhou no imaginário do futebol uma memória inconfundível: foi "o goleiro da Holanda na Copa de 1974, que jogava com a camisa 8". Mas foi mais do que isso (Getty Images) |
Sempre que se lê sobre Jan Jongbloed, em grande parte das menções sobre ele, a referência é a respeito do "goleiro da Holanda nas Copas de 1974 e 1978, que usava a camisa 8 e jogava sem luvas". Isso tem toda a razão de ser, claro: afinal, eram grandes ocasiões. E fora elas, Jongbloed realmente não trazia muito mais a ser lembrado pelo público que acompanha/consome futebol. Tanto que não pode ser considerado uma das "grandes laranjas", como o Espreme a Laranja denomina os textos sobre os melhores jogadores da história do futebol da Holanda (Países Baixos): afinal, Jongbloed nunca foi reconhecido por seu talento.
Todavia, o ex-goleiro também não podia ser colocado na linha dos "grandes jogadores holandeses de quem você nunca ouviu falar" (outra seção deste blog): afinal de contas, bem ou mal, foi titular em duas Copas. E é lembrado por outras razões além das que abrem este texto, feito em celebração aos 80 anos que Jongbloed completa nesta quarta-feira. Razões que serão apresentadas ao longo dele.
A primeira parte: passando despercebido - e gostando disso
Nascido em meio a vários irmãos numa família de Amsterdã, Jongbloed se acostumou a nunca querer ser o centro das atenções. Começou a jogar futebol na rua próxima à sua casa, apenas por diversão - e, de certa forma, por incentivo do pai, um alfaiate que prezava pelos exercícios físicos como o melhor caminho para a longevidade e para o bem estar corporal. Foi o que ele recordou, na biografia Aparteling (termo sem tradução exata para o português, algo como "ovelha negra"), escrita pelo jornalista Yoeri van den Busken, lançada em 2019: "Foi a minha sorte, não se pode negar. Até hoje, jogo vôlei semanalmente com pessoas dez anos mais novas do que eu, que têm dificuldades de movimento".
O futebol também colaborou nisso, de certa forma. Jongbloed logo foi praticar mais seriamente a modalidade, no AFC-DWS (Amsterdamsche Football Club - Door Wilskracht Sterk, "forte pela força de vontade" em holandês), clube hoje amador, que na época era profissional e disputava a primeira divisão holandesa. Já adolescente, ele queria ser goleiro, mas a posição já estava ocupada nos times de base do AFC-DWS. Sem problemas: aprovado, Jongbloed começou a jogar na linha mesmo. Isso serviria para que, quando enfim pudesse jogar no gol, estivesse acostumado ao que hoje se chama "jogar com os pés". Isso mesmo: na virada dos anos 1950 para 1960, Jongbloed já era um goleiro que "jogava com os pés". Até mais do que com as mãos.
E foi assim, adiantado, saindo costumeiramente da área, que Jongbloed evoluiu levemente dentro do futebol holandês. Em 1959, estreou no time principal do DWS, em que seria titular por 13 anos. E rapidamente, ganhou algum reconhecimento. Já em 1960, com 20 anos, foi convocado para a seleção holandesa, sendo reserva de Eddy Pieters Graafland numa excursão pelas Antilhas Holandesas. E em 26 de setembro de 1962, novamente convocado, Jongbloed estreou pela Laranja: substituiu Piet Lagarde nos últimos cinco minutos de um amistoso contra a Dinamarca (goleada dinamarquesa: 4 a 1 em Copenhague).
Porém, ser jogador ainda não era algo que desse muito dinheiro na Holanda: mesmo com o profissionalismo já vigente no futebol de lá desde 1956, poucos atletas viviam só do futebol. Jongbloed era um caso desses: paralelamente à carreira no DWS, mantinha (e fazia questão de manter) uma tabacaria, em parceria com a esposa Dien.
Enfim: o goleiro passava despercebido - e gostava disso. O AFC-DWS nunca foi um clube de ponta no Campeonato Holandês. Havia goleiros melhores e mais reconhecidos no país: Eddy Pieters Graafland, Gert Bals, Piet Schrijvers, Jan van Beveren. Nem mesmo a transformação do AFC-DWS em FC Amsterdam (surgido em 1972, após a fusão entre AFC-DWS e Blauw-Wit - nele, o goleiro seguiu titular) recolocou Jongbloed no radar da seleção. E ele não se importava: já naquela época, preferia a pesca ao futebol. De mais a mais, sua tabacaria ia tão bem que até rendia filiais abertas em Amsterdã.
Em suma, Jongbloed não seria lembrado pelo futebol. Até as vésperas da Copa de 1974.
1974: quando tudo mudou. Ou quase tudo
Antes da Copa de 1974, a posição de goleiro era um relativo problema na preparação da Holanda para o torneio. Jan van Beveren, do PSV, considerado o melhor para jogar debaixo das três traves, não só tinha uma lesão muscular (que terminaria por inviabilizar sua participação na Copa), como já andava às turras com o estilo centralista e personalista de Johan Cruyff e alguns companheiros dele no Ajax. Sobrava Piet Schrijvers, do Twente, que já atuara em algumas partidas das eliminatórias para 1974. Também havia Eddy Treijtel (Feyenoord) e Ton Thie (ADO Den Haag). Todos eles, goleiros que se limitavam a pegar bolas com as mãos. Pouco, para o que Rinus Michels pretendia na seleção que treinaria durante a Copa: usar nela o estilo tático com que já se acostumavam no Ajax.
Isso incluía um goleiro que soubesse jogar com mãos e pés, quase como se fosse um zagueiro com uniforme diferente. Havia a alternativa de convocar Heinz Stuy, o titular do Ajax tricampeão europeu. Mas Rinus Michels se lembrou do discreto titular do FC Amsterdam. Johan Cruyff gostou da lembrança: nativo de Amsterdã como o goleiro, tinha uma relação cordial com ele, que encontrava vez por outra no meio do futebol. Michels preferiu convocá-lo a chamar Stuy. Reza a lenda que Jongbloed estava pescando quando foi comunicado: fora escolhido para a lista final dos 22 convocados a disputarem o mundial na Alemanha. Verdade ou não, o fato é que o goleiro já veterano (33-para-34 anos) voltou a jogar pela seleção quase 11 anos após sua primeira partida: em 26 de maio de 1974, no último amistoso da Holanda antes da Copa, estava lá Jongbloed na meta, nos 4 a 1 sobre a Argentina.
E Jongbloed virou, quase sem querer, o titular dos sete jogos daquela campanha em que a Laranja deixou de ser uma seleção de terceiro escalão no futebol mundial para entrar na história. Com os convocados inscritos em ordem alfabética, aquele homem que mal ligava para futebol fora do campo recebeu o número 8 em sua camisa - de certa forma, ampliando o ar de "mais um na linha" que trazia. Mas fora dos jogos, o arqueiro da camisa 8 amarela (azul contra a Suécia, na fase de grupos) seguia quase alheio ao futebol e à pressão da Copa. Falando ao biógrafo Van den Busken em 2019, ele se recordou: "Eu achava muito legal jogar futebol, ou ser treinador. Mas, como espectador, não era o maior dos amantes. Nunca fui. Em 1974, por obrigação, a gente precisava assistir a outros jogos da Copa. Eu comecei a me chatear rapidamente. Meus pensamentos iam para Dien e meus filhos, e eu não prestava atenção nenhuma".
Havia goleiros melhores e mais falados na Holanda antes da Copa de 1974. Mas Rinus Michels preferiu Jongbloed. E ele não o decepcionou naquele Mundial (Arquivo ANP) |
Já marcado pela camisa 8 e pelo estilo algo ousado de jogar para um goleiro, Jongbloed se notabilizou ainda mais na final daquela Copa: preferiu jogá-la sem luvas - segundo justificou, "para sentir mais a bola". Naquela decisão contra a Alemanha, Jongbloed teve boa participação num lance (defesa em chute de Berti Vogts, no primeiro tempo). Mas foi criticado nos dois gols: sequer escolheu um canto na cobrança de pênalti de Paul Breitner que empatou a final, e ao sequer tentar defender o toque de Gerd Müller que virou o placar para os alemães. Na biografia de 2019, Jongbloed deu de ombros para as críticas: "Quem fala que aquele chute de Müller era defensável nunca jogou futebol".
A Holanda perdeu a final, muita gente no país lamentou a "mãe de todas as derrotas"... mas para o goleiro daquela histórica equipe que simbolizou o "Futebol Total", a vida seguiria a mesma. Tanto que, logo após a Copa, Jongbloed recebeu uma proposta de transferência para o Ajax. Recusou sem dor no coração. Também deixou de lado propostas de Feyenoord e até do Liverpool: preferia continuar pescando, cuidando de sua tabacaria e jogando no ambiente tranquilo do FC Amsterdam.
Repetindo a dose
Jongbloed só deixou o FC Amsterdam (que voltou ao amadorismo em 1982) para outro clube médio/pequeno da Holanda: o Roda JC, em 1977. Já veterano, seguia sendo convocado vez por outra para a seleção, jogava amistosos aqui e eliminatórias da Copa ali, mas perdera a preferência na titularidade para Schrijvers, que fora titular neerlandês na Euro 1976. De todo modo, sua boa forma física, seu ritmo de jogo - era titular absoluto no Roda JC - e sua capacidade de se integrar às jogadas da defesa garantiram a presença entre os 22 convocados para a Copa de 1978. E embora a numeração das camisas da Laranja não tivesse ordem alfabética como em 1974, Jongbloed usaria por vontade própria o número 8. E como na Alemanha, começou titular na fase de grupos.
Entretanto, em meio às várias mudanças por que a Holanda passou antes da segunda fase daquela Copa, para melhorar as atuações após uma inconstante fase de grupos, Jongbloed acabou indo para o banco, com Schrijvers novamente titular. Provavelmente, as coisas seguiriam assim até o final da participação neerlandesa naquele Mundial. Aí, o azar de Schrijvers foi a sorte de Jongbloed: no último jogo da segunda fase, contra a Itália, que definiria uma vaga na final da Copa, o goleiro titular colidiu com o zagueiro Ernie Brandts, justamente na jogada do gol da Azzurra, aos 20'. Lesionado, Schrijvers precisou sair de campo. E foi substituído por... Jongbloed. Que correspondeu àquela situação. E ganhou lugar na seleção que jogou a segunda final de Copa seguida, repetindo a dose de 1974.
Jongbloed começou a Copa de 1978 titular, foi para a reserva no decorrer do torneio... mas o destino fez dele o goleiro da Holanda em mais uma final de Copa (Arquivo ANP) |
A derrota para a Argentina, em Buenos Aires, naquele 25 de junho de 1978, foi a última das 24 partidas do goleiro pela Laranja. Entre elas, duas finais de Copa. Nada mal para alguém que já tinha 37 anos e 212 dias - ainda hoje, Jongbloed é o jogador com mais tempo entre a primeira e a última partida pela seleção da Holanda (15 anos, 9 meses e 29 dias). Notável para um jogador tão discreto e avesso a badalações.
Mas a vida seguia. E ela traria desafios maiores para Jongbloed no começo dos anos 1980.
Várias dores no coração
Virando a barreira dos 40 anos, Jongbloed seguia com o "sangue jovem" (tradução literal de seu sobrenome para o português). Enfileirava temporadas e temporadas como titular do Roda JC. Em 1982, já aos 42 anos, o goleiro mudou novamente de time: do Roda JC, tomou o caminho para o Go Ahead Eagles. Mas se em campo, sua carreira seguia cada vez mais jovial, os problemas fora de campo começaram a se avolumar. A começar pela traumática separação de Dien, esposa de longa data, que já abalou o jogador.
Mas nada seria tão doloroso para Jongbloed quanto ver aquele que prometia continuar sua trajetória no futebol perder a vida, de maneira tão surpreendente quanto trágica. Seu filho, Eric-Jan Jongbloed, já se iniciava no futebol: também goleiro, Eric-Jan atuava no mesmo DWS em que o pai começara a carreira. E era titular no clube (agora) amador. Até o dia 23 de setembro de 1984, num jogo debaixo de chuva pesada, entre o DWS e o Rood-Wit, outra equipe amadora de Amsterdã. Enquanto Eric-Jan jogava, o pai Jan assistia nas cadeiras atrás do gol. Em meio à chuva forte, houve um relâmpago. Jongbloed pai estava com o rosto virado, conversando com Nicole, sua outra filha. Quando voltou, viu a cena aterradora: o relâmpago transformara Eric-Jan em cinzas. Aos 21 anos, ele tinha morrido em campo.
Nada que Jongbloed passou nos campos de futebol foi tão difícil quanto testemunhar a morte precoce e cruel do filho Eric-Jan, atingido por um raio em campo (Arquivo Nacional) |
A tragédia tocou toda a Holanda (Países Baixos). Jongbloed chamou mais a atenção pública ali do que, até, nas duas finais de Copa do Mundo em que jogou. Entrevistado em 2014, Rob Stenacker (colega de Eric-Jan no DWS) descreveu o momento cruel ao jornalista Jurryt van de Vooren. Pouco antes do relâmpago, Stenacker estava na área - cobraria o tiro de meta, mas foi dissuadido por um grito do Jongbloed mais jovem: "Vendo em retrospecto, aquilo salvou minha vida - pode parecer egoísta, mas estou feliz por ter deixado a área. Estava uns seis, sete metros à frente [de Eric-Jan]. Aí, ouvi um barulho horrível nas minhas costas. Notou-se imediatamente que as pessoas tinham visto algo horrível. E quando eu me virei e olhei, só vi fumaça onde Eric estava. Sem exagero: foi como se um mágico o tivesse feito desaparecer".
Nem mesmo um drama daquele tamanho fizera Jongbloed parar de jogar. Ele começou a temporada 1985/86 como titular do Go Ahead Eagles, na primeira divisão holandesa. Até o dia 8 de setembro de 1985, na sexta rodada do Campeonato Holandês, quando a equipe da cidade de Deventer enfrentava o Haarlem, com Jongbloed como titular. Durante aquela partida, o goleiro teve um infarto, em pleno gramado. Foi socorrido, levado ao hospital, sobreviveu. Mas o coração forçava o encerramento da carreira do jogador que mais partidas fez na história do futebol profissional dos Países Baixos: entre 1959 e 1985, Jongbloed entrou em campo por 717 partidas - só pela Eredivisie, foram 686 jogos, um abaixo do recordista, o também goleiro (e recém-falecido) Willem "Pim" Doesburg (1943-2020).
Seguindo no futebol - sem se apegar a ele
Se a carreira em campo teve de acabar, Jongbloed seguiu trabalhando no futebol - fora das quatro linhas. E criou vínculo forte com apenas um clube: o Vitesse. Em 1988, o ex-goleiro entrou para a comissão técnica do time de Arnhem. E já teve uma boa experiência na primeira temporada: auxiliou o treinador Bert Jacobs na vitoriosa campanha que levou o Vites à primeira divisão. Em 1989/90, as coisas melhoraram mais ainda: além do quarto lugar no Campeonato Holandês, os Arnhemmers ainda foram à final da Copa da Holanda.
Ao longo daquela década, o Vitesse foi se estabilizando como um time médio no Campeonato Holandês - e Jongbloed acompanhou todo o processo, do banco de reservas. Às vezes, até como técnico interino: ele comandou a equipe entre novembro de 1995 e junho de 1996, apenas concluindo a temporada da Eredivisie até a chegada de Leo Beenhakker, e entre outubro de 1999 e janeiro de 2000, sendo sucedido por um Ronald Koeman que teria sua primeira experiência como técnico principal.
Se Koeman começava, ali Jongbloed terminava: a partir de 2000, preferiu trabalhar nas categorias de base do Vitesse. Nelas ficou até 2010, quando enfim se retirou do futebol. Dez anos depois, embora continue com leve vinculação ao esporte (é comentarista na Radio Noord-Holland, emissora regional de rádio em Amsterdã), Jongbloed segue pouco afeito a ele. Continua preferindo uma vida tranquila, conforme comentou ao biógrafo Yoeri van den Busken: "Não sou de luxos. Rico, eu não vou ficar. Só tenho uns centavos na conta do banco, e a casa em que moro é minha. Só pago 68 euros por mês. Se eu morrer, fica tudo para Nicole e os filhos dela. Já ajeitei tudo para quando acontecer. Até seria bom se eu tivesse mais, mas estou contente com o que tenho".
Jongbloed em 2016: o futebol sempre o circunda, mas ele não se apega às lembranças (ANP) |
Futebol? Só na rádio, ou nas vezes em que vai assistir aos jogos em que a neta atua. Nem mesmo memorabílias do tempo de jogador ele guarda: "Vivi um período legal, mas num certo momento, começam a exagerar sobre a carreira. Sempre penso na minha mãe. Quando estava no leito de morte, ela disse 'foi legal'. É isso". Resumindo ao biógrafo Yoeri van den Busken, Jongbloed resumiu sua vida atual num mantra pessoal: "Eu gosto de pescar, de mulheres e de futebol. Nesta ordem".
E mesmo assim, discretamente, foi um dos únicos goleiros a jogar duas finais de Copa. Mesmo assim, discretamente, sempre será lembrado como "o goleiro da Holanda nas Copas de 1974, que jogava com a camisa 8". Não é para qualquer um.
Jan Jongbloed
Data de nascimento: 25 de novembro de 1940, em Amsterdã
Clubes: AFC-DWS (1959 a 1972), FC Amsterdam (1972 a 1977), Roda JC (1977 a 1982) e Go Ahead Eagles (1982 a 1985)
Seleção: 24 jogos, entre 1963 e 1978
muita bom saber mais desse goleiro, agora q soube q faleceu recentemente. Pela vida leve e sua contribuição ao futebol merecia ter tido mais reconhecimento profissionalmente e nao tantas amarguras na vida
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