sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Passo a passo

O protesto de Ahmad Mendes Moreira abriu a discussão do racismo no futebol holandês. Discussão já muito viva antes (Soccrates/Getty Images)

É dia 20 de novembro, o dia de reflexão sobre a condição dos negros no Brasil - data justificada pela morte de Zumbi dos Palmares, há exatos 325 anos. Assim como, há três dias, foi dia 17 de novembro de 2020. Quando se completou um ano de ofensas ditas por alguns torcedores do Den Bosch ao atacante Ahmad Mendes Moreira, do Excelsior, durante o jogo entre ambas as equipes, pela 15ª rodada da Eerste Divisie, a segunda divisão do futebol da Holanda (Países Baixos). Indignado com as ofensas, Mendes Moreira deixou o gramado por alguns minutos, durante os quais a partida parou. Um fato que trouxe ao futebol holandês, abertamente, uma discussão que não só já está posta na mesa do futebol mundial, mas que até demorou para entrar dentro de campo nos Países Baixos: a presença de atos racistas, dentro e fora de campo. Presença que não começou em 17 de novembro de 2019.

Os pioneiros: num trevo de cinco folhas

Aliás, ela começa junto com a presença dos primeiros jogadores que migraram do Suriname (antiga colônia holandesa, vale lembrar) para os Países Baixos, nos anos 1950. Uma dupla de irmãos simboliza essa primeira diáspora: Humphrey (1930-2019) e Frank Mijnals. Ambos filhos de um jogador surinamês, Louis Mijnals, começaram a jogar pelo Robinhood, um dos clubes mais tradicionais da capital surinamesa, Paramaribo. Querendo seguir carreira profissional, Humphrey - três anos mais velho do que Frank - deixou o Suriname para correr mundo. Andou até pelo Brasil - nos idos de 1956, Humphrey chegou a atuar pelo América pernambucano. Até parar na Holanda, onde começou a jogar no Elinkwijk (um dos clubes que entrou na fusão originária do atual Utrecht).

Em 1957, também desejoso de ser um jogador profissional, Frank também tomou o caminho da Holanda (que adotara o profissionalismo em seu futebol no ano anterior). Também foi jogar com o irmão no Elinkwijk. A mesma coisa fizeram outros surinameses: Michel Kruin, Erwin Sparendam (1934-2014) e Charley Marbach. A frequência deles no Elinkwijk os tornou parte de um grupo: foram nomeados "o trevo de cinco folhas". Vários dos integrantes do "trevo" encararam atitudes racistas contra eles, em campo. 

Michel Kruin (primeiro sentado, da esquerda para a direita), Humphrey (segundo sentado) e Frank Mijnals (quarto sentado), Erwin Sparendam (quinto sentado) e Charley Marbach (primeiro em pé, da esquerda para a direita): os surinameses do Elinkwijk se insurgiram contra o que sofriam, vez por outra (Ben van Meerendonk/AHF/coleção IISG)

Falando em reportagem ao diário NRC Handelsblad, em julho passado, disponível só para assinantes, Frank Mijnals (ainda vivo, aos 87 anos de idade, morando no Suriname) se recordou de algo vivido na partida contra o MVV Maastricht, pelo Campeonato Holandês, em 1959. Antes mesmo do jogo, o atacante já ouvira do técnico: precisaria estar preparado para as ofensas que viriam. Durante a partida... "Gritaram o jogo inteiro para mim 'macaco, volta para a árvore, negro sujo, imundo'! Eu não me deixei levar". Porém, perto do fim do jogo, o zagueiro André Maas, do MVV, agarrou Mijnals pela face, dando-lhe ainda um soco no estômago. Foi demais: Frank perguntou por que o oponente lhe fizera aquilo. Sem resposta, devolveu: um tapa no rosto de Maas. 61 anos depois, Frank Mijnals se recordou: "Eu não entendo por que ele me bateu. Não tinha acontecido nada entre a gente no jogo".

O que Mijnals soube é que, depois do tapa em André Maas, a briga se generalizou. Um grupo de torcedores do MVV chegou a entrar em campo e o agrediu mais. Nas lembranças em 2020, ele recordou: "Por sorte, havia polícia por lá, senão tinham me matado". Pior ainda foram as consequências posteriores. Frank Mijnals foi julgado, teve de pagar multa de 75 mil florins (moeda holandesa da época) e levou suspensões da federação e do próprio clube. A lamentação de Frank ainda segue neste ano: "Era como se me dissessem 'como um negro pode bater num branco?'".

Se havia lamentação, também havia altivez e devolução contra qualquer ato discriminatório na época. E aí, o exemplo não foi só de Frank Mijnals. Também ao NRC Handelsblad, o atacante Michel Kruin (o outro ainda vivo do "trevo de cinco folhas", também aos 87 anos) se lembrou: em 1958, durante um jogo entre Elinkwijk e Blauw-Wit, Kruin recebeu uma cusparada do meio-campista adversário Anton Goedhart, que lhe disse na sequência para que "voltasse ao Suriname". Bastou: Kruin disse que deixou "Goedhart a nocaute", e ambos foram expulsos do jogo. Tudo com um detalhe: assistindo àquela partida, na tribuna de honra, estava Severinus Emanuels, ministro-presidente do Suriname na época. E Kruin acrescentou algo ao troco: foi a Emanuels. "Eu disse calmamente a ele que, se alguém nos pegasse de novo, nunca mais nenhum negro viria jogar no Elinkwijk".

(Antes de Blauw-Wit x Elinkwijk, em 1958, o presidente do Suriname cumprimentou os jogadores negros migrados de lá. Durante o jogo, Michel Kruin foi ofendido, respondeu, foi expulso... e falou mais algo ao presidente)

Humphrey Mijnals: indo à seleção e respondendo no mesmo tom

O mesmo tom de "bateu, levou" também vinha de Humphrey Mijnals. Aí, quem lembrou ao diário holandês foi sua viúva, Marianne Mijnals. Mantendo recordações do companheiro de vida no corredor do apartamento onde vive, em Utrecht, Marianne exibiu alguns recortes de jornal com entrevistas. Num deles, Humphrey dizia: regularmente era chamado de "negro sujo", ou mesmo de "Zwarte Piet" (que voltará a ser assunto deste texto, daqui a pouco), mas... "se acontece isso, eu devolvo com um 'branco sujo' de volta, e fica tudo certo". Marianne acrescentou: "Ele seguia com isso, nunca foi um grande problema". 

Se ouvia ofensas racistas, Humphrey Mijnals respondia no mesmo tom. E preferia o orgulho de ter sido o primeiro negro a atuar pela seleção holandesa (Arquivo ANP)

Para Mijnals, valia mais outro orgulho: foi ele o primeiro jogador negro a atuar pela seleção holandesa, em 1960, estreando num amistoso contra a Bulgária (Holanda 4 a 2) - e se destacando nele, ao evitar um gol dos búlgaros com uma bicicleta na pequena área. Mijnals fez três jogos pela Laranja: depois, ao protestar contra o método de escolha pelas convocações na época, foi colocado numa "lista de proibidos" da federação. Para ele, tudo bem: já tinha valido, sem traumas. Humphrey deixou claro em entrevista aos jornalistas Fred Huber e Thales Soares, do globoesporte.com, em 2013: "No meu tempo, [a relação entre brancos e negros] era perfeita. Nunca houve problema. Eu amava jogar pela Holanda e eles gostavam de jogar comigo. Mesmo sendo o primeiro, eles me respeitavam. Joguei ao lado de grandes nomes como Faas Wilkes e Abe Lenstra, lendas do futebol holandês". Sete anos depois, neste 2020, a viúva Marianne confirmou: "Ele se orgulhava da carreira. Sempre que conhecia alguém, dizia imediatamente 'eu fui jogador profissional e atuei pela seleção da Holanda'".

De certa forma, a conversa mais aberta sobre racismo inexistia naquela primeira geração. Decorrente até de uma preocupação dos próprios imigrantes surinameses em campo, conforme Michel Kruin reconheceu ao NRC Handelsblad: "Falava-se pouco de discriminação. Eu acho que nos levariam a mal [se falássemos]". Frank Mijnals teve menos papas na língua: "O racismo era bem pior naquela época do que agora". Mesmo se sofressem, a preferência de ambos era responder em campo. Kruin se lembrou: "Todos nós íamos para um canto [antes do jogo] e fazíamos um grito de guerra. Não me lembro precisamente do que gritávamos, mas era algo na linha de 'nós, homens negros, não vamos deixar ninguém vir para cima da gente'". E Mijnals, mais detalhista, confirmou: "Para mim, tinha a ver com a mentalidade neerlandesa. O importante era só o que a comunidade branca pensava da comunidade negra, nunca o que a comunidade negra pensava. Éramos colocados num canto. (...) Mas se eu ouvia algo racista, meu objetivo era dar uma lição aos branquelos com os pés. Porque, naquela época, nada humilhava mais do que um jogador negro que fosse mais rápido do que um branco".

Rijkaard e Gullit começaram a jogar futebol na mesma vizinhança em que moravam. Também começaram a aumentar a voz em relação aos assuntos étnicos no futebol holandês, nos anos 1980 (ANP)

Gullit, Rijkaard, Menzo: as vozes começam a falar

O tempo passou. Na década de 1970, alguns filhos de imigrantes surinameses começaram a se encantar pelo futebol - principalmente nas ruas do Jordaan, bairro operário de Amsterdã. Ali começaram a bater bola dois garotos amigos, chamados Ruud Gullit e Frank Rijkaard. Eles cresceram, viraram jogadores e começaram a se destacar, nos anos 1980 - Gullit no Feyenoord e, depois, em PSV e Milan; Rijkaard, no Ajax. Eram símbolos negros na Holanda, e sabiam disso. Em 1986, já titular da Laranja, Rijkaard falou ao diário Het Parool que "a Holanda se tornara um país multirracial" e que "isso tinha de ser aceito". 

Gullit foi além, no apogeu de sua carreira, já no Milan: ao receber a "Bola de Ouro" da revista France Football, em 1987, o atacante quis se manifestar em seu discurso, pedindo a libertação de Nelson Mandela, então ainda preso na Ilha Robben, na África do Sul. Foi proibido pela revista. Deu seu jeito: distribuiu uma cópia do discurso que faria a cada um dos presentes, e ofereceu o prêmio a Mandela. Ali se criava, indiretamente, uma relação cordial entre o jogador e o homenageado, que tiveram alguns bons momentos até a morte de Mandela, em 2013 - foi justamente quando se publicou algo na Trivela sobre a relação entre "Madiba" e Gullit.

De certa forma, as manifestações sutis mas firmes de Gullit e Rijkaard em relação às causas étnicas já eram um sinal de que o problema era mais visto - e mais alertado. Basta lembrar que Gullit reconheceu à revista Voetbal International, em 1988, tão logo soube que o treinador da seleção da Holanda seria Thijs Libregts: "Será difícil trabalhar com um treinador como Libregts”. Tudo por se lembrar que, em 1984, treinando o Feyenoord, Libregts comentou ao diário De Volkskrant como lidava com a boa fase de Gullit nos campos: "Eu espero que a mentalidade dele [Gullit] continue boa. Negros, sabe como é...". 

Stanley Menzo marcou época no gol do Ajax. E também se manifestou sobre como recebia as (frequentes) ofensas racistas que tinha de escutar (Pics United)

Também contemporâneo dos dois era o goleiro Stanley Menzo, titular do Ajax entre 1984 e 1993, querido da torcida Ajacied por sua postura carismática, bastante comentado pelo estilo de jogar até melhor com os pés do que com as mãos. Na seleção, Menzo nunca conseguiu muito espaço: foi reserva da Laranja, na Copa de 1990 e na Euro 1992. Mas no Ajax, marcou época. E entrevistado pelo mesmo NRC Handelsblad, em 1991, indicou que nem mesmo o caráter mais "multirracial" citado por Frank Rijkaard eliminara as ofensas que ouvia, de vez em quando - assim como indicou que aprendera a se importar menos com aquilo: "Negro de merda, garoto de programa, judeu sujo - é mais ou menos o que eu ouço das arquibancadas. Agora, gritos como 'tem um macaco na árvore' saíram de moda, mas ao invés disso eles fazem aqueles barulhos de 'uh, uh, uh'. Eu me arrepio. Há pouco tempo, atiravam frutas exóticas contra mim. (...) Por outro lado, eu não deixo que isso influencie em minhas atuações. Eu me sinto mais forte: jogo uma boa partida e saio rindo. Se você se deixa levar, eles pegam você mesmo. Sentem isso, fazem gato e sapato de você. 'Gritos não doem', eles dizem. Ora, se doem...".

Mais pedidos por mais respeito

E a geração posterior - Michael Reiziger, Winston Bogarde, Clarence Seedorf, Edgar Davids, Patrick Kluivert - deu um passo à frente nas manifestações ao se sentir menosprezada dentro do ambiente futebolístico. Basta lembrar do Kabel, o grupo que unia aqueles colegas jovens de geração e ascendência. Da diferenciação de salários feita naquela época, dentro do grupo de jogadores do Ajax. De como tudo isso explodiu dentro da campanha da seleção masculina da Holanda na Euro 1996 - melhor descrita neste texto do Espreme a Laranja (republicado pela Trivela), em 2016. Embora nomes como Kluivert tenham dito que o teor racista foi o de menos naquela discussão, ficou claro que aquela geração tinha personalidade e queria ser respeitada. Algo descrito pelo jornalista Simon Kuper: "Nenhum dos negros quis sugerir que [Guus] Hiddink [técnico da Holanda na Euro 1996], [Ronald] De Boer ou Blind foi deliberadamente racista. Eles só pensam que o técnico foi insensível. Acham que ele os vê como negros talentosos, de uma cultura semelhante à do rap, não como líderes. Claramente Hiddink subestimou o pedido deles por respeito".

Esta foto, com jogadores brancos e negros em mesas separadas, causou grandes problemas à delegação da Holanda na Euro 1996: o tema étnico podia não ser o mais importante da discussão, mas os jovens negros que surgiam na Laranja tinham personalidade e queriam respeito (Guus Dubbelman).

E o pedido por respeito foi além nesta geração que hoje é preponderante na seleção masculina da Holanda. Denzel Dumfries, Virgil van Dijk, Georginio Wijnaldum, Memphis Depay... a lista é grande. E todos eles têm procurado exercer postura cada vez mais crítica contra atos racistas, chamando atenção neste 2020. Começou a partir do principal tema para discussões socioétnicas nos Países Baixos, já há algum tempo: a questão do "Zwarte Piet" (lembram?). Personagem negro retratado em enfeites de Natal, antes visto apenas como "o ajudante de Sinterklaas" - Sinterklaas é o Papai Noel para os holandeses -, agora retratar o "Zwarte Piet" é visto como retratar o negro apenas num papel subalterno. Pior ainda: com muitos brancos se fantasiando de Zwarte Piet nas festividades de Natal, o ato dá margem para a prática do "blackface" (brancos interpretando negros), cada vez mais criticada em tempos atuais. 

Cada país tem seu tema local na discussão universal sobre racismo e antirracismo. O tema da Holanda é o Zwarte Piet (Getty Images)

Outros acham que tais queixas são desnecessárias, que é apenas um personagem tradicional de Natal. Seja como for, o Zwarte Piet foi o "tema local" dado às manifestações holandesas referentes à violência contra negros, despertada pela morte de George Floyd, em junho passado. Duas presenças nelas foram Dumfries (nos atos em Roterdã) e Memphis Depay (em Amsterdã). Comentarista e colunista conhecido no futebol holandês, Johan Derksen criticou os atos na mesa-redonda Veronica Inside, da emissora de tevê Veronica: "Respeito os que protestam, mas tudo que vejo são malucos querendo espaço na tevê". E ao ver um negro caracterizado como o Zwarte Piet, com um cartaz tendo "Zwarte Piet Lives Matter" ("A vida do Zwarte Piet importa"), Derksen fez o gracejo: "Quem me garante que aquele não é Akwasi?", em referência a um rapper e ativista holandês. 

Memphis Depay foi presença de primeira hora, quando as manifestações do "Vidas Negras Importam" chegaram à Holanda (Perfil pessoal de Memphis Depay no Twitter)

Bastou: dias depois, uma nota assinada por Van Dijk, capitão da seleção masculina, e Sari van Veenendaal, capitã da seleção feminina, informava que os jogadores de ambas as seleções boicotariam o Veronica Inside. A nota terminava assim: "É humor irresponsável? É o que se fala nas discussões de futebol nos botecos? É só uma opinião? Não! Já foi longe demais. Não é a primeira nem a segunda vez. É seguido. Basta". Lateral da seleção feminina, Merel van Dongen acrescentou: "A liberdade de expressão é boa e muito importante, mas uma opinião ou uma piadinha podem doer e ferir".

O melhor protesto é dentro ou fora de campo?

Antes mesmo disso, já houvera os atos contra Ahmad Mendes Moreira. Falando à FOX Sports holandesa após o fim daquele Den Bosch x Excelsior - no qual até chegou a marcar gol -, o atacante lamentou: "Ouvi falarem em 'negro disso', 'negro daquilo', 'Zwarte Piet'... tudo bem, podem xingar, mas é muita coincidência que só eu tenha sido o alvo. Isso me causa muita dor". Em meio a datas FIFA, Georginio Wijnaldum se destacava na seleção da Holanda. E se manifestou abertamente sobre o que ocorrera na segunda divisão - e até sobre mais coisas: indagado sobre o caso do Zwarte Piet, o meio-campista opinou que, por ele, o personagem "precisa mudar". Naqueles dias, a seleção se mostrou tocada: os jogadores convocados posaram para uma foto, usada numa campanha feita nas rodadas seguintes de primeira e segunda divisão - os times pararam durante um minuto após o início das partidas, como que indicando que não se mexeriam caso fossem ouvidas ofensas racistas. A comemoração unida de Wijnaldum e Frenkie de Jong, comemorando um gol nos 5 a 0 contra a Estônia - apontando para os braços, como que indicando que a cor da pele de ambos não importava - foi mais um sinal simpático.

A comemoração conjunta de Wijnaldum e Frenkie de Jong contra a Estônia, nas eliminatórias da Euro, dias após as ofensas racistas contra Mendes Moreira, foram elogiadas. Mas não resolveram (Rico Brouwer/Getty Images)

Mas tais medidas publicamente antirracistas não atraíram a crença de um dos negros de maior destaque no Campeonato Holandês, na atualidade: André Onana, goleiro do Ajax. Entrevistado pela revista Voetbal International justamente após as ofensas a Mendes Moreira, o arqueiro camaronês foi mais firme na descrença em relação a mudanças de postura: "Eu não sairia do campo em caso de ofensas racistas. Aprendi muitas coisas aqui na Holanda. Sair do campo só atrairia atenção extra. Não quero isso. Há coisas na vida que não influenciam, e essa é uma delas, em minha opinião. Não posso mudar o comportamento de um grupo no estádio. Para ser honesto, quando jogamos [Ajax] fora, sempre gritam algo racista para mim. Ouço essas coisas. Há muito tempo. Para você [jornalista] é anormal, por isso o choque. Mas é comum para mim. Em quase todo jogo fora de casa há frases racistas. Não posso mudar isso. Por isso, tenho de ser mais forte do que o racismo, lidar com ele, ignorar. Vocês querem que pare, eu também, mas não acontecerá. Nem mesmo se alguém sair do campo duas, três vezes. O futebol não é sobre racismo, por isso nem precisamos falar nisso. O futebol une, homens e culturas. É sobre isso que temos de falar. Claro que desejo a interrupção, mas quer minha opinião honesta? O racismo nunca acaba. Sempre haverá algumas pessoas falando coisas". 

Dos anos 1950 até agora, muitas opiniões sobre os atos mudam. Se sair do campo foi a atitude tomada por Ahmad Mendes Moreira, pelo menos por alguns minutos, o veterano Frank Mijnals se mostrou contrário ao método de protesto, falando ao NRC Handelsblad: "Eu acho que aquele rapaz precisa se preparar contra esse tipo de coisa. Ele não construiu nenhuma barreira. Acima de tudo, você deve dizer 'eu sou negro, eu me orgulho de ser negro, e eu me concentro 100 por cento no futebol'". Já Michel Kruin refletiu sobre as diferenças entre a época em que jogou no Elinkwijk e agora, em 2020: "Eu gostaria de ter falado, e falado mais forte. Mas penso se eu conseguiria sozinho... você era achincalhado só de entrar em campo. Tínhamos menos visão do que os jogadores de hoje têm. Realmente nos levariam a mal, nós seríamos quebrados".

A "Comissão Mijnals" foi criada pela federação holandesa para, supostamente, trazer mais representatividade às suas medidas. E já se levantou por não ser ouvida (KNVB Media)

Enfim, com o alarido em torno do que Ahmad Mendes Moreira ouvira, a federação holandesa se mexeu. Com a suposta intenção de ter mais representatividade em suas escolhas, criou em julho de 2020 a "Comissão Mijnals": homenageando exatamente Humphrey Mijnals, o conselho contava com nomes como o apresentador de televisão Humberto Tan; a ex-jogadora (e diretora do futebol feminino no Ajax) Daphne Koster; o prefeito de Arnhem, Ahmed Marcouch; e o próprio Ruud Gullit. Porém, já numa primeira escolha importante após o advento da "Comissão Mijnals", houve fortes discordâncias entre ela e a federação. Após a contratação de Frank de Boer para treinar a seleção masculina, Humberto Tan criticou a opção: "Parece que todo o processo de escolha foi um teatro. A KNVB quis fazer a comissão, porque ela mesma indicou que desejava ser mais diversa e inclusiva, queria lutar contra o racismo e a discriminação. Mas nada aconteceu de acordo com nossos conselhos". Pelo menos por enquanto, a "Comissão Mijnals" ainda continua.

Diferenças de visão, diferenças de abordagem... entre palavras e ações, a opinião dos negros sobre o que sofrem no futebol dentro da Holanda (Países Baixos) anda para a profundidade. Passo a passo, dos anos 1950 até hoje.

(No começo desta semana, veio a resolução de investigação sobre ato de discriminação de um torcedor contra o atacante Issa Kallon, em MVV Maastricht x Cambuur, pela primeira rodada da segunda divisão holandesa. De acordo com nota do MVV, a federação decidiu que não poderia punir o clube de Maastricht, "já que o clube não poderia evitar tal ato")

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