segunda-feira, 20 de maio de 2019

A análise do campeão: o título certo por caminhos tortos

O Ajax viveu de altos e baixos na Eredivisie. Mas em 2019, ficou no alto e não saiu mais. Resultado: título holandês (Pim Ras Fotografie)
É costumeiro se dizer que, num campeonato por pontos corridos, o título premia o time mais regular, a equipe que manteve seu nível com mais frequência ao longo das rodadas. Enquanto isso, o mata-mata premia aquela equipe mais embalada na reta final, aquela que sobe de produção na hora da decisão. Pois bem, o Campeonato Holandês 2018/19 embaralhou um pouco esses conceitos estereotipados. Afinal de contas, durante grande parte da Eredivisie, o PSV foi o time mais regular, e esteve mais perto do bicampeonato. Só que o Ajax se aproveitou do seu melhor momento em 25 anos, num 2019 de sonho, para ser irresistível rumo ao 34º título nacional de sua história.

Do jeito como a temporada começou, o mais previsível era pensar que o PSV seguiria tranquilo e infalível rumo ao bicampeonato. Hirving Lozano pode até nem ter sido tão brilhante quanto foi no título de 2017/18, mas Steven Bergwijn era imparável pela ponta esquerda, as contratações para as laterais dos Eindhovenaren foram certeiras (tanto na direita, com Denzel Dumfries, quanto na esquerda, com o espanhol Angeliño) e, acima de tudo, Luuk de Jong viveu um dos melhores momentos da carreira, empilhando gols e liderando a equipe de tudo. Além do mais, mesmo em seu primeiro trabalho como técnico de um time adulto, Mark van Bommel soube passar à equipe um "espírito vencedor". Por isso, o PSV nunca desistia de buscar a vitória. E a conseguia - em vários momentos, nos acréscimos do segundo tempo, como contra o Fortuna Sittard (2 a 1, na 2ª rodada) e contra o Zwolle (também 2 a 1, na rodada seguinte).

E o Ajax? Começara o Campeonato Holandês pensando em uma coisa: chegar à fase de grupos da Liga dos Campeões. Para um time que fora mais ambicioso na preparação para a temporada, mantendo os destaques cobiçados (Matthijs de Ligt, Hakim Ziyech) e trazendo reforços a peso de ouro (Daley Blind e Dusan Tadic), repetir os vexames de 2017/18 não era uma opção aceitável. No entanto, o começo na liga nacional foi preocupante. Já na estreia houve preocupação, aliás: o Heracles Almelo fez 1 a 0 em Amsterdã, e o empate Ajacied só veio nos acréscimos. A primeira vitória - na segunda rodada, 1 a 0 sobre o VVV-Venlo, fora de casa - foi árdua, com Tadic marcando o gol nos últimos minutos.

Desde as primeiras rodadas da Eredivisie, ficava claro: o título holandês seria um assunto apenas para PSV e Ajax. Por mais que o Feyenoord tentasse, sofria com tropeços contra adversários menores; e de qualquer forma, atualmente o título holandês é apenas um sonho para clubes médios/pequenos. E entre PSV e Ajax, a solidez dos Boeren de Eindhoven impressionava. Só foram perder na 14ª rodada da liga (2 a 1 para o Feyenoord, num clássico). De resto, no primeiro turno, foram 16 vitórias, muito perto de igualarem o desempenho do próprio PSV, em 1987/88, como o melhor time em 17 rodadas na história do Campeonato Holandês. Tinha mais: na Liga dos Campeões, embora tenha sido o último colocado em seu grupo, o time de Eindhoven só saiu perdendo nos dois jogos contra o Barcelona. Fez jogos duros contra Tottenham (abriu 1 a 0 em Wembley, só tomando a virada dos Spurs no final), e segurou o 1 a 1 contra a Internazionale em San Siro. Se tivessem um grupo mais fácil na Champions League, talvez os Boeren também tivessem avançado às oitavas de final, como o Ajax fez.

Por muito tempo, o PSV pareceu na rota do bicampeonato holandês. Até que cansou... (voetbalzone.nl)
Aliás, nem mesmo a classificação entre os 16 que seguiriam em busca do título europeu acalmava a situação em Amsterdã. Sonhar em conquistar a Liga dos Campeões era uma quimera, dessas proibitivas no futebol moderno. O objetivo primordial do Ajax era acabar com o jejum de cinco anos sem títulos holandeses. E esse objetivo andava distante. Não porque o time não tivesse talentos, mas porque havia inconstância. Erik ten Hag penava tentando achar soluções táticas. Prova disso era David Neres. Ótimo em 2017/18, o brasileiro começou experimentado no meio-campo, e decepcionava. Foi para o banco, tinha a saída cogitada. Era melhor jogando na ponta-direita, mas... como tirar de lá Hakim Ziyech, talvez o mais técnico jogador Ajacied? Ele poderia ser recuado para o meio, mas isso tiraria espaço de Donny van de Beek, outro talento que não merecia a reserva. E no ataque? Insistir com um nome de referência, fosse Klaas-Jan Huntelaar ou Kasper Dolberg, ou manter Dusan Tadic ali, como se fazia na Liga dos Campeões?

Essas dúvidas consumiam o Ajax, enquanto o PSV estava embalado. Nem mesmo a pausa de inverno acabara com esses dramas. E eles continuaram quando a Eredivisie voltou, em janeiro. As primeiras rodadas do returno deixavam claro que talvez o bicampeonato dos Eindhovenaren fosse inescapável. Na 18ª rodada, em 20 de janeiro, o Emmen surpreendeu o líder com um empate por 2 a 2, nos acréscimos, abrindo caminho para o Ajax diminuir a vantagem... e o Ajax, em casa, permitiu o empate do Heerenveen (4 a 4). Na rodada seguinte, então, a tragédia maior dos Godenzonen: em 26 de janeiro, uma goleada sofrida para o Feyenoord, no Klassieker que teve o último grande dia da carreira de Robin van Persie. Enquanto isso, no dia anterior, o PSV manteve a vitória sobre o Groningen: mesmo com dificuldades, abocanhou os três pontos com o 2 a 1. Certo, é preciso lembrar que o Ajax tivera a zaga reserva contra o Feyenoord, com Lisandro Magallán substituindo o lesionado De Ligt. 

Mas ficava a impressão: o PSV era eficiente, e o Ajax não era. Mesmo quando tropeçava, o time do Philips Stadion tinha raça para buscar um ponto - como fizera na 21ª rodada, contra o Heerenveen (2 a 2, com Donyell Malen empatando no último lance do jogo), e na 22ª rodada, contra o Utrecht (outro 2 a 2, com Luuk de Jong igualando aos 86'). O Ajax começava jogando mal uma partida... e às vezes era superado. Como foi na 22ª rodada, quando perdeu fora de casa para o Heracles Almelo - 1 a 0, com o gol sofrido numa falha do goleiro André Onana. Parecia que a Eredivisie tinha acabado.

Aí tudo mudou.

Contra o Real Madrid, nas oitavas de final da Liga dos Campeões, o Ajax entrou com um ataque mais móvel, como fazia no torneio continental: Dusan Tadic no meio do ataque, com David Neres e Hakim Ziyech nos lados. Houve a derrota (2 a 1 em Amsterdã), mas os Ajacieden jogaram tão bem que... se reanimaram. Em todos os sentidos. Quem já jogava bem na temporada, como De Ligt e Frenkie de Jong, começou a jogar ainda melhor. O trio de ataque se estabilizou: David Neres-Tadic-Ziyech. Em outras palavras: Erik ten Hag "achou" o time, "achou" um jeito de jogar. Já não precisava mais quebrar a cabeça. Serviu não só para se aprumar no Campeonato Holandês, mantendo as vitórias. Serviu para abrir a chance de um sonho na Liga dos Campeões, com as históricas eliminações sobre Real Madrid e Juventus.

E o PSV, com isso tudo? Continuava mantendo a liderança na Eredivisie, mas já dava preocupantes sinais de cansaço, de ser um time "manjado". Foi assim no clássico contra o Feyenoord, na 23ª rodada, quando saiu atrás no placar mesmo com um homem a mais no Philips Stadion, e deu sorte do 1 a 1 final ter saído já no minuto seguinte, com Lozano. Foi assim contra o VVV-Venlo, na 26ª rodada, quando Lozano fez 1 a 0 aos 86', num jogo dificultado pela estratégia dos Venlonaren, firmes na defesa. Parecia a vitória decisiva - porque o Ajax tinha entrado numa inesperada maratona, e perdeu naquela rodada, para o AZ (1 a 0). Mas os Boeren tinham dificuldades cada vez maiores. Van Bommel tentava mudar, dinamizando o time, dando espaço aos talentos da base PSV'er: Michal Sadílek, Mohammed Ihattaren, Cody Gakpo, Zakaria Aboukhlal. 

Só que o embalo do Ajax crescia. E o encontro direto pelo título, na 27ª rodada, deixou claras essas duas coisas: a ascensão irresistível do Ajax e o cansaço do PSV. O clássico emocionante na Johan Cruyff Arena poderia até ter se desequilibrado em favor dos visitantes de Eindhoven, quando Noussair Mazraoui foi expulso aos 57', e Luuk de Jong empatou para o time da Philips um minuto depois. Mesmo assim, o Ajax foi atrás. Protegeu-se na defesa, como podia, e insistiu nos poucos espaços ofensivos. Num dos avanços, conseguiu um pênalti, com Daniel Schwaab derrubando David Neres. Dusan Tadic fez 2 a 1, depois o próprio Neres fez 3 a 1 para o Ajax, e estava mudado o espírito do campeonato.

Aqui a Eredivisie mudou: com um a menos, o Ajax conseguiu superar o PSV, e consolidou o embalo para o título (VI Images)
A vantagem do PSV na liderança, que chegara a ser de oito pontos, caía para três. As fragilidades do líder tinham sido colocadas a nu. E ficaram ainda mais expostas na 29ª rodada, que deu a liderança da Eredivisie ao Ajax: enquanto os Godenzonen goleavam o Willem II (4 a 1), o PSV sofria contra o Vitesse, ficando no 3 a 3. A partir dali, com uma vantagem generosa a favor no saldo de gols e ainda tendo a "ajuda" da federação holandesa no adiamento de algumas rodadas, o Ajax só precisava se controlar para voltar a ser campeão holandês. Nem mesmo a eliminação traumática para o Tottenham, na semifinal da Liga dos Campeões, apagou o desejo massivo de acabar com a "mini-fila" na Eredivisie. E o Ajax comprovou que merecia o título, com duas vitórias contra Utrecht e De Graafschap, enquanto o PSV viu o ponto final de suas esperanças, praticamente, na derrota para o AZ, na 34ª rodada.

Quem simpatiza mais com o PSV pode dizer que o título holandês foi injusto: afinal, os Boeren tiveram mais regularidade ao longo das 34 rodadas. E terá alguma razão. Mas como resistir à notável evolução do Ajax na reta final da temporada? A Eredivisie acabou tendo uma "injustiça justa" em sua decisão, porque o Ajax recebeu o título que desejava. O título certo, após uma temporada de caminhos tortos.

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