O Ajax de Ten Hag foi mais um holandês a decepcionar no momento final. Mas jogou bem. Para a Holanda, é o suficiente (Getty Images) |
A traumática eliminação do Ajax na Liga dos Campeões, nesta quarta, trouxe novamente um questionamento para alguns, e uma crítica para outros - até aqui no Brasil, com Benjamin Back, da FOX Sports, e André Plihal, da ESPN: por quê diabos os times holandeses, e a própria seleção do país, quase nunca conseguem mostrar a frieza necessária em horas decisivas? Sim, houve o título da Euro 1988, fora a riquíssima história dos clubes dos Países Baixos em torneios europeus. No entanto, por tantas vezes em que as equipes estiveram tão perto de façanhas e falharam (a seleção, nas Copas de 1974, 1978, 1998, 2010 e 2014; os clubes, em tantas semifinais e finais de torneios continentais), a questão segue sobre a eventual incapacidade holandesa em saber, até, deixar de lado seu estilo tático em detrimento dos títulos. No entanto, é uma questão que já está respondida, pelo próprio modo como o holandês vê futebol: poderia haver mais pragmatismo, mas atacar vale mais.
Claro, títulos são comemorados, e derrotas são lamentadas - se houver dúvidas, basta saber que Dick Advocaat, técnico justamente do Utrecht que enfrentará o Ajax pelo Holandês no próximo domingo, esteve comentando a decepção desta quarta na televisão e tinha os olhos marejados após o jogo. No entanto, para o holandês "médio", o futebol é, acima de tudo, entretenimento. Até pelo país ter uma condição econômica (ainda) estável, não há uma sensação de precisar vencer nos campos para mitigar a dureza da vida fora deles. Assim, quando há uma derrota em jogos decisivos, a tristeza dura cinco minutos, dez minutos, talvez uma noite... mas passa rapidamente, e a vida continua rumo a mais um jogo. Até mesmo as gozações adversárias têm limite. Algo diferente do que se vê no Brasil, em que a pressão é duríssima - às vezes, justificavelmente - por cada resultado positivo.
Além do mais, o estereótipo mostra que holandeses são, no mínimo, pouco acostumados a estarem no centro das atenções - claro, não é nenhuma regra, há exceções, mas faz algum sentido. Há até um ditado no país, prezando o gosto pela normalidade, pelas poucas novidades: "Doe maar normaal, dan doe je gek genoeg" (em português, "aja normalmente, isso já é maluco o bastante"). No futebol, isso se traduz num país que ainda se assusta quando tem o favoritismo nas mãos. Basta citar o exemplo maior de decepção futebolística holandesa: a Copa de 1974. Mesmo naquele momento, com a grande seleção de sua história, com alguns dos grandes jogadores nederlandeses já vistos nos campos, torcida e imprensa só acreditaram que podiam ser campeões mundiais após a vitória sobre o Brasil. A mesmíssima coisa na Copa de 2010: a equipe vinha fazendo uma campanha consistente, mas só ao superar a Seleção Brasileira é que o ambiente na Holanda se esquentou à espera do título.
Essa falta de costume com as situações limítrofes de favoritismo se junta a outra razão pela qual o futebol holandês assimila mais facilmente suas derrotas: a aversão a jogar "pelo resultado". Algo instilado, principalmente, por Johan Cruyff: enquanto conquistava seu espaço em campo e no banco como personalidade no país, o "Número 14" sempre prezava pela manutenção do estilo visto em 1974. Se não fosse possível vencer, pelo menos um sorriso ficaria na cara de quem havia acompanhado aquilo. Deixar de lado a ofensividade, a busca pelo gol, a velocidade, em troca do resultado esportivo é visto como algo... egoísta. E há um exemplo até extremo disso, no Ajax: sob o comando do técnico sérvio Tomislav Ivic (1933-2011), os Godenzonen foram campeões holandeses na temporada 1976/77. Nada disso contentou a torcida: em geral, Ivic era um técnico que cuidava predominantemente da defesa, escalando o Ajax num incomum 5-3-2. Resultado: nem o título conquistado ajudou o técnico a escapar da demissão, em 1978, após somente dois anos em Amsterdã.
Ivic ganhou um título holandês com o Ajax. De nada adiantou: o defensivismo deu vida curta ao técnico sérvio |
Claro, o mundo foi mudando, o futebol foi mudando, e a Holanda também teve personagens em seu futebol que tinham um olhar mais pragmático. Aliás, desde a década de 1970: se o Ajax brilhava com o "Futebol Total", o Feyenoord também alcançava ótimos resultados, tendo como técnico o austríaco Ernst Happel, que resumia seu estilo em uma frase: "Kein geloel, maar voetbal" (em holandês, "sem mimimi, joguem bola"). Desde então, o Feyenoord é bastante apegado a mostrar raça, força física e intensidade em campo. Aos poucos, depois de várias decepções, tais pensamentos começaram a ecoar em mais cabeças. Duas delas estavam na seleção holandesa que disputou a Copa de 2010. No banco, o técnico Bert van Marwijk; em campo, Mark van Bommel. Dois personagens conhecidos pela defesa do pragmatismo.
E isso ficou claro na atuação da Laranja na final em Joanesburgo, contra a Espanha, quando a aposta ficou clara nos contra-ataques e na duríssima (até violenta) marcação sobre os adversários. Resultado: para muitos holandeses, aquela derrota na final da Copa é tratada com tristeza não por ela em si, mas pelo modo como se jogou. Na revista Hard Gras, publicação de textos com um olhar mais distante sobre o futebol, o jornalista Henk Spaan resumiu esse sentimento: "Duas horas de jogo sepultaram uma história de 40 anos". Em suma, era como se a rispidez da seleção holandesa de 2010 tivesse apagado toda a ideia vista a partir de 1974. Tanto que Bert van Marwijk foi demitido da seleção logo que surgiu a chance, após o vexame na Euro 2012. E nunca mais teve chances num clube holandês. Talvez, até, injustamente: nunca mais a Holanda chegou tão perto de ganhar a Copa. De todo modo, Van Marwijk segue em órbita: foi o conselheiro informal de Van Bommel quando este assumiu o PSV.
Van Marwijk e Van Bommel simbolizam o crescimento dos adeptos do pragmatismo no futebol da Holanda (ANP) |
Por outro lado, em 2014, após as dificuldades que a lesão de Kevin Strootman trouxe à preparação holandesa para a Copa do Mundo, o técnico Louis van Gaal decidiu engolir em seco sua preferência ofensiva. Sabia: se a Holanda se metesse a desafiar Espanha e Chile com tudo aberto, dificilmente passaria da fase de grupos. Então, apostou num esquema com três zagueiros, com muita proteção no meio-campo, apostando que Robin van Persie e Arjen Robben poderiam resolver tudo no ataque. E quase deu certo, com uma equipe mediana alcançando o terceiro lugar no Brasil. Seus sucessores, Guus Hiddink e Danny Blind, apostaram na sequência do velho estilo holandês... e a Holanda ficou fora tanto da Euro 2016 quanto da Copa de 2018. Ou seja: o pragmatismo começa a ganhar adeptos lentamente entre os que acompanham futebol na Holanda.
Ainda assim, a preferência pelo apego ao estilo segue alta. O Ajax até poderia ter sido mais cauteloso contra o Tottenham? Sim. Mas não quis. Foi eliminado, deixando a torcida (e o ambiente de futebol) tristes na Holanda. Ainda assim, para os holandeses, os aplausos são um digno e sincero reconhecimento. Há uma ideia popular de futebol lá, embora nem todo time a adote. Os holandeses pagam o preço por ela, desde 1974. Pagaram de novo, ontem. E se eles preferem assim... quem somos nós, brasileiros ou de qualquer outro país, para julgar?
Muito bom o texto!
ResponderExcluirTexto perfeito Felipe. E realmente ontem foi uma pena... Que derrota doída. Espero que o Ajax segure o máximo possível destes jogadores, pelo menos por mais uma temporada. Gostaria de ver este grupo já um pouco mais "calejado" pra próxima Champions League.
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