sexta-feira, 10 de maio de 2019

Grandes laranjas: Bergkamp

Concentração e talento: a bola sempre ajudou Bergkamp, na procura do movimento perfeito em campo (AFP)
De Johan Cruyff a Arjen Robben, praticamente todos os personagens antológicos na época moderna do futebol holandês têm uma personalidade temperamental, daquelas que gostam de colocar tudo sob debate. São craques inquestionáveis e polêmicos. Há poucas exceções. Uma delas é um sujeito que, até hoje, não é muito de aparecer publicamente, parece sempre sério, é tão avesso a publicidade que prefere seguir como auxiliar técnico, mesmo que siga trabalhando no futebol após o fim da carreira. E está tudo bem, porque, pelo que mostrou em campo, como o jogador holandês mais habilidoso de sua geração, deixará saudades eternas. Nesta sexta, esse craque discreto faz 50 anos: Dennis Bergkamp.

Bergkamp ainda tinha cabelo em sua primeira temporada no Ajax. E já mostrava talento... (VI Images)
Ascensão meteórica pela técnica

Dennis Nicolaas Maria Bergkamp já começou vinculado a futebol antes mesmo de nascer, em 10 de maio de 1969, em Amsterdã: seu pai, Wim Bergkamp (eletricista e atacante amador nas horas vagas), era admirador de Denis Law, o atacante escocês que virou ícone do Manchester United. Junto da mãe Tonnie, Wim deu o nome do ídolo ao rebento. E na infância num bairro de classe média-baixa em Amsterdã, o jovem Dennis tinha nos bate-bolas com os amigos sua grande diversão - enquanto se inspirava no grande ídolo, que era um... inglês: o meio-campista Glenn Hoddle.

A diversão virou coisa séria em 1980, quando Bergkamp tinha 11 anos: enfim, ele entrou num clube para jogar futebol - no caso, o Wilskracht/SNL (hoje chamado GeuzenMiddenmeer, após algumas fusões). Demorou pouco, e já no ano seguinte o talento que mostrava no ataque levou o infanto-adolescente a ser chamado para as categorias de base do Ajax. E na afamada De Toekomst, a escola do clube, Dennis foi se aprimorando ao longo daquela década de 1980, passando pelos times inferiores do Ajax. Até que chegou a hora daquele jovem chegar ao time principal. 

A hora foi, mais precisamente, em 14 de dezembro de 1986. E a oportunidade foi dada por um cidadão que conhecia aquele Ajax como a palma da mão: Johan Cruyff, técnico da equipe Ajacied adulta, colocou Bergkamp no lugar de Rob Witschge, aos 67', na vitória por 2 a 0 sobre o Roda JC, pela 18ª rodada do Campeonato Holandês. Foi a estreia do jovem atacante, aos 17 anos. E ele também agradou rapidamente. Ainda naquela temporada, na goleada por 6 a 0 sobre o Haarlem, já em 1987 (22 de fevereiro), na 20ª rodada da Eredivisie, Bergkamp marcou seu primeiro gol na carreira adulta.

Mostrando tanto capacidade de finalização quanto técnica no domínio de bola, a promessa Ajacied já agradava Cruyff, sempre exigente na rapidez de adaptação dos novatos. A tal ponto que Bergkamp já estava no banco de reservas quando o Ajax voltou a conquistar um título europeu, naquela temporada 1986/87, vencendo a Recopa Europeia. Mais do que isso: na final da Recopa, contra o Lokomotiv Leipzig (da Alemanha Oriental), Bergkamp já teve 24 minutos em campo, novamente substituindo Rob Witschge. Comemorou mais um título com o Ajax, na Copa da Holanda. Com apenas 18 anos de idade, ficava claro que aquele jovem já tinha um futuro promissor pela frente.

E o futuro foi se realizando rapidamente. Até porque Marco van Basten, destaque no título da Recopa, rumou para o Milan logo após a temporada 1987/88. O espaço de Bergkamp dentro do Ajax foi aumentando: jogando na ponta-esquerda naquela época, ele ainda não era de tantos gols. Isso mudou a partir da temporada 1988/89: em 30 jogos, foram 13 gols pelo Ajax. No entanto, o jovem ainda sofria com as irregularidades de desempenho típicas da idade, num momento de baixa do clube de Amsterdã, perdido em crises e vendo o PSV se destacar na Europa.

Tudo bem: Bergkamp merecia paciência. Já era considerado uma daquelas promessas que virariam realidade garantida.

Bergkamp já despontara definitivamente no Ajax. E explodiu para a seleção holandesa na Euro 1992 (Marc Francotte/TempSport/Corbis/Getty Images)
A explosão. A decepção. E o medo de avião

Tão logo a Copa de 1990 terminou, com a decepcionante campanha da Holanda, ficou claro que algumas coisas iriam mudar, no ciclo rumo à Euro 1992. E Bergkamp foi integrante de primeira hora nessas mudanças: estreou na Laranja logo na primeira partida após aquela Copa, um amistoso contra a Itália, em Palermo, no dia 26 de setembro (vitória da Azzurra, por 1 a 0). Mais alguns meses, e ele marcou seu primeiro gol pela Oranje, nos 2 a 0 sobre a Grécia, em 21 de novembro de 1990, pelas Eliminatórias da Euro. Mas naquele começo de década, o Amsterdammer primeiro explodiria no Ajax, para depois garantir seu lugar na seleção holandesa.

Tal explosão já ficou consolidada na temporada 1990/91 do Campeonato Holandês. O PSV foi campeão, mas Romário e Bergkamp disputaram gol a gol a artilharia daquela Eredivisie - e ambos ganharam, terminando com 25 gols cada um. Bergkamp já era realidade, e isso ficou provado na sua titularidade durante a campanha de qualificação que levou a Holanda à Euro 1992. Mais do que isso: no meio de 1991, o atacante do Ajax ganhou seu primeiro prêmio de "Jogador do Ano" na Holanda.

A partir da temporada 1991/92, a explosão foi incontrolável. Bergkamp foi novamente o goleador da Eredivisie, com 24 gols - dessa vez, ocupou o posto sozinho. Foi um dos símbolos do Ajax na conquista da Copa da UEFA, naquela temporada. Foi convocado para a Euro, foi titular absoluto da Holanda, foi um dos goleadores do torneio continental de seleções (três gols, junto ao alemão Karl-Heinz Riedle, ao dinamarquês Henrik Larsen e ao sueco Tomas Brolin), foi um dos melhores atacantes daquele torneio. Conseguiu o segundo prêmio seguido de "Jogador do Ano" na Holanda. Finalmente, em 1992/93, foi artilheiro da Eredivisie pela terceira vez seguida, com 26 gols. Enfim, Bergkamp já estava grande demais para o futebol holandês. Atraiu interesse de vários clubes italianos: Milan, Juventus... e a Internazionale, que o levou.

O título da Copa da UEFA, em 1993/94, foi o único momento alegre na passagem decepcionante de Bergkamp pela Internazionale (Steve Morton/Empics/Getty Images)
Tinha tudo para dar certo. Não deu. Na verdade, Johan Cruyff, que já treinava o Barcelona então, advertira: Bergkamp corria sérios riscos de fracassar, no esquema tático defensivo da Inter. O holandês até viveu uma mudança tática que lhe ajudou, indo para o centro do ataque, onde ficaria o resto da carreira. Mas teve muitas dificuldades no entrosamento com o uruguaio Ruben Sosa. Como a própria Inter, de certa forma: o time nerazzurro terminou aquela temporada em 13º lugar no Campeonato Italiano, a pior posição de sua história na Série A. Pelo menos, Bergkamp compensou na Copa da UEFA: o atacante fez oito gols na campanha que rendeu o título ao clube de Appiano Gentile - destaque para os gols contra Norwich City-ING, nas oitavas de final, e contra o Cagliari-ITA, na semifinal.

Já era o suficiente para Bergkamp manter seu status na seleção holandesa. Se mesmo com Van Basten ele já fora titular absoluto na Euro 1992, nas Eliminatórias da Copa de 1994 o atacante se consolidou como a grande estrela da Laranja, já que Van Basten vivia as agruras finais da lesão no tornozelo que encerrou sua carreira. Foram cinco gols na qualificação para o Mundial - um deles, na fundamental vitória por 2 a 0 sobre a Inglaterra, em Roterdã, no dia 13 de outubro de 1993. 

Óbvio, Bergkamp foi nome certo na convocação para a Copa. E a sua importância na seleção holandesa que estaria nos Estados Unidos cresceu ainda mais, após a polêmica deserção de Ruud Gullit, a duas semanas da estreia da Oranje no Mundial. Pois o cidadão correspondeu à pressão. Em meio às atuações irregulares da Laranja na competição, era um dos únicos nomes a satisfazerem plenamente. Fez gol na vitória sobre Marrocos, na fase de grupos; abriu o placar e o caminho da vitória contra a Irlanda, nas oitavas de final; e nas quartas, mesmo após o Brasil fazer 2 a 0, Bergkamp marcou e começou a reação da Oranje rumo ao empate, antes que Branco decidisse aquela partida emocionante em Dallas a favor do futuro campeão mundial.

Bergkamp já chegou à Copa de 1994 como principal destaque da Holanda - e correspondeu em campo (VI Images)
Porém, se aquela Copa confirmou que Bergkamp era diferenciado, também começou a lhe trazer um trauma duradouro, que ficou quase tão conhecido quanto sua qualidade. Entre as idas e vindas da delegação holandesa pelos Estados Unidos, dois episódios lhe incomodaram nas viagens de avião. O primeiro: durante um voo naquela Copa, um dos motores de uma aeronave parou de funcionar. O segundo: em Detroit, houve atraso numa decolagem, e enquanto os passageiros esperavam, um jornalista do diário Algemeen Dagblad brincou que tinha uma bomba a bordo, na bagagem de mão. Bergkamp ouviu de passagem e achou que era sério. E se assustou muito - algumas fontes disseram que daí veio seu medo de avião, mas ainda não era para tanto. 

Segundo o próprio revelou em sua biografia, escrita pelo jornalista David Winner, sua aviofobia se confirmou mesmo nas viagens para jogos de copas nacionais com a Internazionale: o clube tinha o hábito de viajar pela Itália em aviões de pequeno porte, que sofriam com as turbulências dos trajetos. Ali, sim, Bergkamp passou a ter pavor de viagens aéreas. Na biografia, ele detalhou: "Eram aviões horríveis, que ficavam entre as nuvens, e chacoalhavam o tempo todo. Quando se olhava para fora, tudo que se via era cinza ou branco. E havia pouquíssimo espaço. Era tão apertado que fiquei claustrofóbico. Não havia espaço para se mexer, e você chacoalhava por toda a viagem. Isso me fez sentir tão mal, comecei a desenvolver tanta aversão, que do nada decidi: 'não quero mais fazer isso'". Tentou-se de tudo, até um tratamento com hipnose, mas não adiantou. Restou a Bergkamp, para sempre, buscar os trajetos terrestres, de carro ou ônibus. E um apelido: "O holandês não-voador".

Mas o temor aéreo foi o menor dos problemas de Bergkamp na Internazionale, a partir de 1994. Com as boas atuações na Copa do Mundo, havia expectativa sobre seu desempenho no time italiano. Mas as atuações do holandês seguiram decepcionantes no Campeonato Italiano, em 1994/95. A imprensa italiana criticava cada vez mais sua lentidão, sua insistência em manter a posse de bola - a tal ponto que, em alguns jornais, o pejorativo prêmio "Bonde da semana" passou a se chamar "Bergkamp da semana". Com os torcedores, nada melhorava: a timidez de Bergkamp era confundida com apatia. Para piorar, foram apenas cinco gols em toda a temporada: três pelo Italiano, um pela Copa da Itália, mais outro pela Copa da UEFA.

Justamente em 1995, o magnata Massimo Moratti comprou a Inter, prometendo investimentos pesados. Um deles foi no ataque, com a vinda de Maurizio Ganz. Estava claro que Bergkamp não tinha mais ambiente na Itália. E a Internazionale aceitou rapidamente a oferta do Arsenal: por 7,5 milhões de libras, o holandês foi para o clube inglês no meio de 1995, sem se importar nem com a redução salarial que teria - afinal, o Arsenal pagaria por suas viagens de carro.

Bergkamp teria muitas razões para agradecer por aquela mudança. E o Arsenal também.

Bergkamp se livrou dos tempos difíceis na Internazionale, para fazer história no Arsenal (Tony Harris/PA Images/Getty Images)
Idolatria no Arsenal e lances eternos

Vindo com respaldo de Bruce Rioch, então técnico do Arsenal, Bergkamp chegou aos Gunners trazendo ansiedade para a torcida. Afinal de contas, por mais experiente que já fosse, o Amsterdammer nem chegara ainda ao apogeu técnico e físico de sua carreira. Então, era de se esperar pelo que ele poderia fazer no clube - e também na seleção holandesa. Ainda demorou um pouco para embalar naquele primeiro ano em Londres: recebeu críticas da imprensa inglesa, por ficar seis jogos sem marcar no Campeonato Inglês, mas enfim encontrou as redes pela primeira vez (e pela segunda também, pois foram dois gols) contra o Southampton, no antigo estádio de Highbury. E terminou com números aceitáveis no Arsenal: 11 gols em 33 jogos pela Premier League. Pela seleção, convocado para a segunda Euro da carreira, em 1996, também na Inglaterra, decepcionou: apenas um gol, sem brilhar no ataque da Oranje, em meio a problemas internos. Fosse no clube ou na seleção, algo precisava mudar de vez.

Mudou com a chegada de Arsène Wenger a Highbury, em 1996. Chegando do Japão para desfazer a imagem de um clube taticamente defensivo, chato de se ver jogar (algo expresso literalmente no apelido do clube, "Boring Arsenal" - "Arsenal chato"), o treinador francês viu em Bergkamp um forte candidato a símbolo da ofensividade que desejava nos Gunners. Acostumado ao ataque pela formação e pelos tempos de Ajax, Bergkamp aceitou a responsabilidade. E já começou a melhorar na temporada 1996/97. Ele jogou menos - 29 partidas na Premier League, 4 pela Copa da Inglaterra, só uma na Copa da UEFA -, mas foi mais útil: marcou 12 gols e deu 13 passes para gol na liga inglesa, além de mais dois gols na FA Cup. Pela seleção holandesa, Bergkamp saiu ileso do caos ocorrido entre os jogadores durante a Euro 1996, seguindo como titular absoluto na campanha das eliminatórias para a Copa de 1998 - brilhou com três gols, no 7 a 1 contra o País de Gales.

Mas foi na temporada 1997/98 que Bergkamp deixou de ser apenas um bom jogador para virar craque, um nome para a história. No Arsenal, foi o destaque supremo da campanha que rendeu os títulos do Campeonato Inglês e da Copa da Inglaterra aos Gunners: fez 16 gols em 28 jogos pela Premier League - foram 22 gols, somando-se todas as competições. Contra o Leicester, pela Copa da Inglaterra, entre os três gols marcados no empate em 3 a 3, aquele que Bergkamp julgou o mais bonito em 11 anos de clube. Previsivelmente, o holandês garantiu o prêmio de melhor jogador da temporada, pela associação dos jogadores atuando na Inglaterra. Mas o melhor ainda estava por vir: na seleção da Holanda que disputou a Copa de 1998, na França.

A visão do terceiro gol contra o Leicester, considerado o mais bonito de Bergkamp em seus 11 anos de Arsenal - pelo próprio (Mark Thompson /Allsport)
Livre dos problemas de relacionamento, a Laranja chegou com tudo àquele Mundial. Enquanto Patrick Kluivert jogava mais na área, Bergkamp podia ser escalado como no Arsenal: um pouco mais recuado, vindo de fora para tentar o gol. Fez um dos gols no 5 a 0 holandês contra a Coreia do Sul, na primeira fase. Correu riscos nas oitavas de final, contra a Iugoslávia: abriu o placar da vitória holandesa, mas poderia ter sido expulso após pisar em Sinisa Mihajlovic (o juiz deixou passar - Bergkamp se arrependeu em sua biografia: "Não tenho ideia de por que fiz aquilo"). Mas seu grande momento naquela Copa, na seleção da Holanda, talvez na sua carreira, veio em 7 de julho de 1998.

Estádio Vélodrome, em Marselha, quartas de final da Copa do Mundo. Holanda e Argentina faziam uma partida equilibrada: 1 a 1, uma expulsão para cada lado, uma bola na trave para cada lado. Antes da descrição do lance, é bom dizer: Bergkamp sempre foi considerado um sujeito meticuloso, até preciosista nas suas jogadas - Patrick Vieira, velho companheiro de Arsenal, comentou à biografia de David Winner: "Para dar passes como os que ele dava, você tem de gostar das coisas perfeitas. Eu não me surpreenderia se soubesse que ele gosta de organizar as roupas dele no lugar, realmente não me surpreenderia".

Bergkamp sempre se assumiu como um jogador que procurava a jogada perfeita, o movimento perfeito. Aos 44 minutos do segundo tempo daquelas quartas de final, quando Frank de Boer fez um lançamento do campo de defesa... bem, fiquemos com as palavras de Bergkamp à sua biografia: "É meu gol mals lindo. Nunca se faz uma partida perfeita, mas aquele momento em si foi perfeito, eu acho. Você está naquele 'momento'. Depois daqueles dois toques na bola... aquele momento! Você dá tudo de si. É como se toda sua vida fosse levada até aquele momento". À revista Four Four Two, em 2011, Bergkamp foi mais sucinto: "Primeiro, foi olhar para Frank de Boer - ele vai me lançar a bola. Aí foi correr, para ficar à frente do defensor. A bola vai vir por cima do meu ombro. Eu corri em linha reta, pulei para alcançar a bola, dominei. O segundo toque foi para dentro, para ter certeza de que eu tinha ganhado de Ayala, e ter um melhor ângulo do gol. Mirei no canto oposto e bati".

Melhor do que as palavras, sempre será o vídeo - claro, com a narração que ficou popular, do narrador holandês Jack van Gelder:


Bergkamp teria atuações apagadas pela Holanda na semifinal contra o Brasil, e também na decisão do terceiro lugar daquela Copa, contra a Croácia. Tudo bem: seu gol contra a Argentina já entrara para a história das Copas, impressionara pela perfeição dos movimentos. Simbolizara, enfim, por que ele se tratava do mais talentoso atacante holandês daquela geração. Kluivert podia até marcar mais gols, Marc Overmars era mais veloz, mas se houve um símbolo da seleção holandesa na Copa de 1998, ele foi Bergkamp. E aquele gol contra a Argentina.

Bergkamp, celebrado por Pires (direita) e Wiltord após mais um gol histórico - contra o Newcastle, em 2002 (Owen Humphries/PA Images/Getty Images)
A partir dali, a trajetória de Bergkamp na seleção holandesa foi diminuindo de intensidade. Claro, ele seguiu como titular absoluto quando jogou. Mas a impossibilidade das longas viagens diminuiu sua frequência na Laranja - basta dizer que, em 1999, ele só jogou em cinco amistosos, quatro deles na própria Holanda. Tudo bem: a vaga na Euro 2000 estava garantida por antecipação, com a Holanda como um dos países-sede, junto da Bélgica. E o atacante foi titular na equipe de Frank Rijkaard. Porém, Kluivert se destacou mais no ataque, como goleador daquela Euro. Bergkamp era comumente substituído no torneio: saiu em três das cinco partidas holandesas no torneio, incluindo a semifinal da eliminação para a Itália. Eliminação tão traumática ("Não consigo falar sobre isso", lamentou ao jornalista David Winner meses após a queda na Euro) que representou o ponto final de Bergkamp na seleção da Holanda, após 79 jogos e 37 gols - quarto maior goleador da história da Oranje.

E Bergkamp pôde se focar definitivamente no Arsenal. Em 1998/99, tivera outra boa temporada: 21 gols em 45 jogos, sendo 12 gols em 29 jogos pela Premier League. Os únicos problemas vieram em duas derrotas traumáticas. A primeira foi perder o título da liga para o Manchester United, por um ponto, na última rodada. A segunda, também para o United, foi no "replay" da semifinal da Copa da Inglaterra daquela temporada: após 0 a 0 no primeiro jogo, o 1 a 1 levara a partida para a prorrogação. Nela, Ray Parlour sofreu um pênalti de Gary Neville, e Bergkamp, autor do gol de empate no tempo normal, foi para a cobrança. Bateu... e Peter Schmeichel pegou. Minutos depois, Ryan Giggs marcou o 2 a 1 que levou os Diabos Vermelhos à final, que ganhariam. Depois daquele erro, Bergkamp nunca mais cobrou um pênalti em sua carreira. 

Sem problemas: o respeito que ele tinha em Highbury se manteve inalterado. Alguns colegas iam encerrando suas trajetórias, como Ian Wright e Tony Adams. Outros chegavam fulgurantes aos Gunners, como Nicolas Anelka. E Bergkamp seguia fazendo história. Com algumas tristezas: a derrota nos pênaltis para o Galatasaray, na final da Copa da UEFA 1999/2000, a sequência de vices ingleses para o Manchester United na Premier League (2000 e 2001), a queda para o Liverpool na final da Copa da Inglaterra em 2000/01. Se ainda aparecia em muitos jogos como titular, o número de gols caía um pouco: 10 na temporada 1999/2000, 5 na temporada 2000/01. 

Em 2001/02, o Arsenal enfim reagiu para os títulos: na Inglaterra, voltou a fazer o "double", conquistando tanto o campeonato quanto a copa. E Bergkamp fez mais gols: três na FA Cup, dois na Liga dos Campeões (o Arsenal foi à segunda fase de grupos), nove na Premier League. Um deles, novamente, ficou para a história como um símbolo do movimento perfeito que Bergkamp sempre buscou no ataque. Foi em 3 de março de 2002, contra o Newcastle. Do meio-campo, Robert Pires lançou para a área. Marcado pelo grego Nikos Dabizas, o camisa 10 do Arsenal pensava: "Farei de tudo para tentar o gol". Pouco antes da bola chegar, ele pensou em driblar Dabizas. Ela chegou. Um toque e um giro de Bergkamp. Dabizas estava superado. E estava feito o gol eleito o mais bonito da história da Premier League desde 1992, em pesquisa realizada no site da BBC inglesa, há dois anos.
   

A história no Arsenal continuava. Na temporada 2002/03, Bergkamp chegou ao 100º gol pelo clube, contra o Oxford United, pela Copa da Inglaterra. Em 2003/04, seguiu participando frequentemente na histórica campanha dos "Invincibles", campeões invictos da Premier League: 28 jogos, 4 gols. Seu protagonismo já era dividido com outros estandartes Gunners, como Vieira e Thierry Henry. Novatos apareciam: Gilberto Silva, Cesc Fàbregas, o compatriota Robin van Persie. Bergkamp até desejava seguir jogando mais. Às vezes, chegava a discutir com Arsène Wenger sobre ficar de fora dos jogos com cada vez mais frequência - nada exaltado, mas o holandês discordava da opção do treinador. Mas o tempo estava passando. 
A festa de despedida de Bergkamp teve até Van Basten voltando a campo (Nick Potts/PA Images/Getty Images)
Finalmente, em 2006, Bergkamp decidiu: era o ato final de sua carreira. Não por acaso, foi o ano em que menos jogou pelo Arsenal: 31 jogos, apenas três gols, ficando no banco durante os 90 minutos da final da Liga dos Campeões contra o Barcelona. Era hora de abrir espaço, de ser mais um ícone do Arsenal a dizer adeus, 11 anos, 423 jogos e 120 gols depois. Claro, a homenagem foi massiva. O marco de inauguração do Emirates Stadium foi justamente a sua despedida, em dois jogos, no dia 22 de julho de 2006. Todos os que lhe importavam estavam lá: os pais, a esposa Henrietta, os quatro filhos (Estelle, Mitchel, Naomi e Saffron). O jogo foi justamente entre os dois clubes que o marcaram. Primeiro, com as equipes que Ajax e Arsenal tinham naquele momento - 2 a 1 Arsenal. Depois, uma partida com ex-jogadores de ambos os clubes. O respeito que Bergkamp granjeara ficou claro pela presença em campo de ninguém menos que Johan Cruyff. Até Marco van Basten superou os problemas crônicos no tornozelo, jogando por cerca de dez minutos. 

E Bergkamp encerrou a carreira sabendo: seu lugar era Amsterdã, seu país era a Holanda, ele voltaria para lá, mas o Arsenal sempre abriria espaço para ele. Aliás, Bergkamp sempre ficará com o Arsenal. A estátua inaugurada em fevereiro de 2014, na porta do Emirates, é prova inequívoca disso. 

Mudando de ideia

Durante muito tempo, Bergkamp prometera: jamais seria técnico de futebol. De fato, por dois anos após o fim da carreira, viveu um período sabático, já de volta à Holanda. Aos poucos, levando o filho Mitchel para treinos em escolinhas de clubes holandeses, o ex-jogador foi simpatizando com aquele ambiente das categorias de base. E mudou de ideia: em abril de 2008, decidiu iniciar um curso para treinador, na federação holandesa. Claro, não demorou para que as portas se abrissem: já no meio daquele ano, Marco van Basten, que chegava para treinar o Ajax, chamou Bergkamp para fazer um estágio no clube. 

Mais um pouco, e em 2009 Bergkamp recebeu outra chance, como auxiliar de Johan Neeskens na seleção "B" da Holanda, iniciativa de curta duração da federação do país para a convocação de jogadores candidatos a irem para a seleção principal. Porém, seria no Ajax o papel principal de Dennis. A partir de 2010, com Johan Cruyff tomando a frente na "Revolução de Veludo" que aumentou a participação de ex-jogadores nos rumos do clube e voltou a trazer o apego às categorias de base, Bergkamp esteve lá desde a primeira hora. Primeiro, ajudando Wim Jonk no comando das categorias de base. Depois, como auxiliar técnico de Frank de Boer no tetracampeonato holandês, entre 2011 e 2014. Mais do que isso: Bergkamp seguia sendo um "conselheiro técnico" dentro do Ajax. Era como um representante do que o clube deveria ser.
Bergkamp (à direita na foto) voltou ao Ajax para ser um símbolo do que o clube deveria ser (VI Images)
Até uma mudança de rumos do clube representar seu fim ali. Após as turbulências em 2017, criou-se um racha dentro da diretoria. De um lado, o diretor de futebol Marc Overmars, preconizando que reforços experientes e mais caros seriam necessários para formarem um time forte junto das revelações que saíssem do clube de Amsterdã. Do outro, Bergkamp e Jonk, recomendando que o apego à base seguisse. Overmars ganhou aquela discussão: no fim de 2017, Bergkamp deixou o Ajax, em meio à saída do técnico Marcel Keizer, escolhido em parte por prezar o trabalho com jogadores jovens (e em parte, também, por ser amigo e contemporâneo de Bergkamp, quando este começava a carreira).

Após um ano parado, Bergkamp teve as portas abertas novamente em março deste 2019. No Almere City, time em cuja equipe de aspirantes atua o filho Mitchel, o ex-atacante foi convidado para ser o auxiliar técnico de tal equipe - dando ele mesmo os treinos, duas vezes por semana. Por enquanto, como auxiliar, posição na qual ainda se sente melhor. Mas, já que mudou de ideia, o que impede Bergkamp de mudar e ser mais um a treinar clubes na Holanda? Expectativa não faltaria. E os feitos como jogador justificam o encantamento que sempre se terá por ele. 

Dennis Nicolaas Maria Bergkamp
Nascimento: 10 de maio de 1969, em Amsterdã, Holanda
Carreira: Ajax (1986 a 1993), Internazionale-ITA (1993 a 1995) e Arsenal-ING (1995 a 2006)
Seleção: 79 jogos, 37 gols, entre 1990 e 2000

2 comentários:

  1. Este foi o primeiro jogador holandês que admirei. Categoria pura, frieza e genialidade. Dennis Bergkamp marcou época e será para sempre lembrado.

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  2. Uma correção Felipe, no jogo Holanda 2 x 1 Argentina, jogo este em que a lenda Bergkamp marcou o gol mais bonito da Copa de 1998, a data daquela épica partida não foi em 07/07/1998 como fora informado e sim em 04/07/1998. OK!
    Existe um detalhe extremamente curioso sobre aquele lindo gol que o Bergkamp marcou contra os Hermanos na Copa de 1998. Era muito comum para a lenda Frank de Boer dar aqueles tipos de lançamentos ao longo de sua carreira, e em um destes lançamentos num jogo PSV 2 x 1 Ajax pela Eredivisie 1992/93, ocorrera exatamente o mesmo enredo do que viria acontecer 5 anos mais tarde, no grande jogo Holanda 2 x 1 Argentina-Copa de 1998, ou seja, lançamento de De Boer + domínio clássico de Bergkamp= Gol Antológico. Os dois lances se comparado simultaneamente é praticamente o mesmo, apenas com uma pequena diferença, já que fora mais difícil para Bergkamp dominar aquela bola que se encontrava bem próxima da linha de fundo contra a Argentina do que diante dos rivais de Eindhoven no já citado jogo PSV 2 x1 Ajax pela Eredivisie 92/93.Parece que na Copa de 1998, no momento em que F.De Boer faz o lançamento, o Bergkamp já pressente o que vai acontecer, ele acompanha o lance atentamente assim como em 1993,e logo em seguida executa faz a execução da jogada dando um drible fantástico em Ayala e finalizando categoricamente no ângulo posto de Roa, mas lembrando se sempre que tudo isso aconteceu, lembrando em muito o que ocorrera 5 anos antes da realização do Mundial de 1998.
    Felipe, porque não vemos mais o Jack van Gelder nas narrações? Nem na Eredivise e nem nos jogos da Holanda eu vejo ele, está fazendo muita falta, as suas narrações sensacionais. Exemplos: Copa de 1998: A obra prima de Bergkamp, EURO 2008: Os bailes da Holanda contra Itália (3x0) e França (4x1) pela Euro 2008 e no incrível chocolate Holanda 5x1 Espanha era ele o narrador.Imagina o Jack van Gelder narrando toda essa trajetória do Ajax(a renascença) nesta temporada seria muito bonito de ver.

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