sexta-feira, 30 de junho de 2023

A Holanda na Copa feminina - as 23 convocadas: Martens

Há muito tempo, Lieke Martens já não tem mais o destaque de outros momentos. É vista com desconfiança. Mas... como questionar a convocação de quem já fez tanto? (KNVB Media)

Ficha técnica
Nome: Lieke Elisabeth Petronella Martens
Posição: Atacante
Data e local de nascimento: 16 de dezembro de 1992, em Bergen (Holanda)
Clubes na carreira: Heerenveen (2009 a 2010), VVV-Venlo (2010 a 2011), Standard Liège-BEL (2011 a 2012), FCR Duisburg-ALE (2012 a 2014), Kopparbergs/Götebörg-SUE (2014 a 2016), Rosengard-SUE (2016 a 2017), Barcelona-ESP (2017 a 2022) e Paris Saint Germain-FRA (desde 2022)
Desempenho na seleção: 144 jogos e 59 gols, desde 2011
Torneios pela seleção: Euro 2013 (3 jogos, nenhum gol), Copa de 2015 (4 jogos, 1 gol), Euro 2017 (6 jogos, 3 gols), Copa de 2019 (7 jogos, 2 gols), torneio olímpico de 2020+1 (4 jogos, 4 gols) e Euro 2022 (2 jogos, nenhum gol)

(Versão revista e ampliada do texto de apresentação para o guia deste blog na Copa de 2019)

Quando a Copa de 2019 chegava, Lieke Martens era a grande candidata a protagonista da seleção feminina da Holanda (Países Baixos) naquele torneio - talvez, até a protagonista geral do torneio. Agora, quatro anos depois, outro Mundial se aproxima, e a situação de Lieke mudou completamente dentro de campo. Por vários problemas nos últimos anos, a melhor jogadora do mundo - segundo a FIFA - em 2017 perdeu grande parte do protagonismo que já teve pelas Leoas Laranjas. Contudo, aqui e ali, ela ainda mostra lampejos do melhor que já jogou. Sua experiência em clubes grandes é das maiores, dentro do grupo de convocadas. De quebra, fora dos campos, seu simbolismo ainda faz dela garota-propaganda valiosa no futebol feminino mundial. Por essas e outras, sem Vivianne Miedema, Martens é o grande símbolo da seleção laranja para a opinião pública. Apesar dos pesares, vai à terceira Copa de sua carreira como titular no ataque. Ainda absoluta. 

Dá para dizer que Lieke nem demorou muito para se revelar capaz de chegar a grandes alturas na carreira. Começando no RKVV Montagnards (clube de Bergen, sua cidade natal), aos cinco anos de idade, a jogadora foi subindo pelos times infantis do clube. Até que, aos treze anos, Martens foi convidada para jogar num combinado regional selecionado pela federação holandesa na província de Limburg, onde fica Bergen. Com as atuações por aquele time, a criança encontrou espaço num clube amador maior: o Olympia '18, da cidade de Boxmeer - que trouxe Martens por conselho de alguém muito importante: Vera Pauw, técnica da seleção feminina adulta. 

A partir de então, Lieke já merecia mais atenção. Algo confirmado em 2008, quando passou a fazer parte do projeto mantido pela federação em parceria com a HvA, universidade de Amsterdã, para descobrir talentos da Holanda no futebol feminino. Finalmente, a carreira profissional da atacante começou em 2009, quando ela foi contratada pelo Heerenveen. No clube da Frísia, o desempenho foi ruim: apenas dois gols em 18 jogos. Mas Martens usou suas atuações na seleção sub-19 da Holanda para provar o talento: na Euro Sub-19 realizada em 2010, ela foi titular na campanha das Leoas. Campanha ótima: a Holanda só parou nas semifinais, eliminada pela Inglaterra, nos pênaltis. Para a jovem, ficou melhor ainda: ela foi artilheira daquela Euro, com 4 gols, junto da alemã Turid Knaak. Naquela seleção sub-19, Martens acharia várias colegas que seguem com ela na seleção adulta atual: Merel van Dongen e Stefanie van der Gragt, por exemplo.

Mas em clubes, dentro da Holanda, sua carreira começava de modo inconstante. De volta da Euro Sub-19, Martens se transferiu para o VVV-Venlo. Teve números razoáveis: no Campeonato Holandês da temporada 2010/11, marcou 9 gols em 20 jogos pelos Venlonaren. Mas só desabrochou a partir de 2011: nesse ano, a atacante se transferiu para o time feminino do Standard Liège, da Bélgica. No Standard Fémina, a holandesa já chegou conquistando a Supercopa feminina do país, com direito a dois gols na decisão desta Supercopa. Mais do que isso: jogando bem pelos Rouches, recebeu a primeira convocação para a seleção da Holanda, estreando num amistoso contra a China (22 de agosto, empate por 1 a 1). 

O começo de Martens, no VVV-Venlo (vvv-venlo.nl)

Bastou para que a atacante ganhasse a chance num grande centro europeu do futebol feminino: foi contratada pelo FCR Duisburg, da Alemanha, em janeiro de 2012. Concluiu a temporada pelo Standard com ótimas marcas (25 jogos, 17 gols), e estreou pelo clube alemão a partir de julho. Na seleção, àquela altura, já marcara alguns gols - o primeiro em fevereiro, na vitória sobre a Itália, pela amistosa Copa do Chipre. Mais importante: Martens se consolidava na ponta esquerda, mostrando bom domínio de bola. Por isso, mesmo com o mau começo pelo FCR Duisburg (5 jogos e 20 gols, em 2012/13), já foi convocada pelo técnico Roger Reijners para a seleção feminina que disputou a Euro 2013. A campanha foi ruim: queda na fase de grupos. Mas já era uma experiência valiosa.

E assim Martens seguiu. Mediana para baixo no FCR Duisburg: só dois gols, em dez jogos no Campeonato Alemão da temporada 2013/14. E mesmo assim, titular absoluta da seleção da Holanda. Por isso, outro país tradicional do futebol feminino abriu espaço para ela: a Suécia, por meio do Kopparbergs/Götebörg, que contratou Martens para a temporada 2014/15. O desempenho de Lieke já melhorou um pouco: foram sete gols, em 19 jogos pela liga sueca. Mas na seleção, ela explodiu a partir de 2014: foram outros sete gols, nas Eliminatórias da Copa de 2015 - com destaque para dois, marcados contra a Escócia, na repescagem da qualificação. A Holanda alcançou a vaga na primeira Copa feminina de sua história. E nela, Martens brilhou mais: foi titular nas quatro partidas das Leoas Laranjas, e marcou o primeiro gol holandês num Mundial de mulheres, definindo com um chute colocado a vitória por 1 a 0 sobre a Nova Zelândia, em 6 de junho de 2015, na cidade canadense de Edmonton.

Martens chuta para fazer história contra a Nova Zelândia, na Copa feminina de 2015: o primeiro gol da Holanda num Mundial (Maddie Meyer/FIFA/Getty Images)

Martens voltou do Canadá como um dos destaques da nova geração da Holanda que dominaria a seleção dali por diante. O ex-jogador Stefan Rehn, seu treinador no Kopparbergs/Götebörg, comparava sua capacidade de finalização à da compatriota Manon Melis, companheira de Martens na Copa. E após a liga sueca de 2015, com 5 gols em 18 jogos, Lieke mudou de clube: o Rosengard foi seu destino, já a partir de novembro. Enfim, a evolução notável na seleção se mostrou também em clubes: Martens fez 12 gols em 18 jogos, no Campeonato Sueco da temporada de 2016. Participou das vitoriosas campanhas do Rosengard na Copa da Suécia e na Supercopa da Suécia. Em 2017, seus números foram ainda melhores: 8 gols em 11 partidas pela Damallsvenskan. Enfim, a atacante chegava trazendo muita expectativa sobre seu desempenho na Euro feminina. Ainda mais porque a Holanda era o país-sede da Euro. E porque, antes mesmo do torneio continental, ela acertou a transferência para o Barcelona.

Pois mesmo a expectativa mais alta foi superada por Martens. Desde a estreia, a atacante dava um toque valioso de habilidade ao ataque da Holanda. Fez gol importantíssimo na vitória por 2 a 1 sobre a Bélgica, no jogo final da fase de grupos. Abriu o placar no triunfo sobre a Suécia, por 2 a 0, nas quartas de final. E deixou sua marca na final consagradora contra a Dinamarca, que rendeu o título às Leoas Laranjas. Mais do que isso: Lieke foi símbolo de ofensividade, de criatividade, de perigo ofensivo. Por isso, tão logo a Euro acabou, foi dela o prêmio de melhor jogadora do torneio. Mais do que isso: foi dela o prêmio de melhor jogadora do mundo, segundo a FIFA, em 2017.

Mais do que o título da Euro feminina, os títulos de melhor do torneio e de melhor do mundo para a FIFA impulsionaram Martens como craque a partir de 2017 (Pro Shots)

Àquela altura, Martens já era titularíssima do Barcelona. Teve números razoáveis no Campeonato Espanhol feminino: foram 11 gols em 30 partidas. Se ficou faltando o título na Primera División Femenina (o Barcelona foi vice-campeão), veio a conquista da Copa de la Reina, a copa feminina da Espanha, na temporada 2017/18. Finalmente, na temporada seguinte, veio o vice-campeonato na Liga dos Campeões feminina. Na seleção, com habilidade e até experiência, Lieke se consolidou como o vértice mais notável do trio de ataque com Miedema e Van de Sanden: foram oito gols nas eliminatórias da Copa de 2019. Quando o torneio chegou, por mais que já se tivesse certeza de que Miedema seria uma grande goleadora naquele e nos anos seguintes, era de Martens que torcida e imprensa holandesas mais esperavam na França.

E Martens até se esforçou. Porém, poucos sabiam: desde o princípio da Copa, a atacante sofreu com muitas dores no dedão do pé direito. Jogando com mais lentidão nos avanços pela esquerda, era facilmente marcada, e não conseguia se destacar. Ainda assim, brilhou num dos momentos em que a Holanda mais precisou dela em campo: nas oitavas de final. Num dificílimo jogo contra o Japão, Martens abriu o placar, no começo. Junto às colegas, teve o empate das japonesas - que passaram boa parte do segundo tempo bem mais perto da vitória. Só que bastou um pênalti, aos 88', para a camisa 11 aparecer, fazendo o gol de um 2 a 1 quase milagroso para a Holanda ganhar o jogo e a vaga nas quartas de final da Copa. Na comemoração, contudo, um azar piorou a situação de Martens: em meio a tantos pulos, Jill Roord pisou justamente no dedão do pé que doía tanto. E no restante da Copa, Martens jogaria no sacrifício. Chegando a se locomover numa cadeira de rodas entre as partidas para poupar o local dolorido, foi substituída no decorrer da semifinal e da final do torneio. 

Na Copa de 2019, Martens foi impedida de brilhar pelas fortes dores que tinha no dedão do pé. Pelo menos, se destacou num momento em que a seleção precisava demais dela (Rico Brouwer/Soccrates/Getty Images)

Era só o começo de problemas. A lesão no dedão do pé se agravara tanto que Martens saiu da Copa do Mundo quase diretamente para a mesa de cirurgia: operada no local, só voltaria aos campos em novembro de 2019. Aos poucos, recuperava o espaço no Barcelona, retornou às titulares logo no começo de 2020, ainda ajudaria na temporada (foram 8 passes para gol e dois gols no Campeonato Espanhol)... mas aí surgiu a pandemia de COVID-19, inviabilizando os jogos da reta final. Pelo menos, o Barcelona foi declarado campeão de La Liga. Só que o período mais dramático da pandemia afetou Martens pesadamente, pelo menos no aspecto psicológico: morava sozinha na cidade espanhola, e assim passou o isolamento.

Pelo menos, viriam algumas compensações ao longo da temporada 2020/21. A primeira, valendo ainda pelo período afetado da pandemia: a Copa da Rainha 2019/20 teve suas fases finais disputadas na época posterior, e o Barcelona garantiu nela mais um título. No Campeonato Espanhol 20/21, mais uma taça erguida - e Martens, voltando a ser titular, teve seu melhor momento no Barcelona, com 15 gols nos 25 jogos que fez em La Liga. De quebra, houve mais uma conquista da Copa da Rainha. Só que o auge viria mesmo na Liga dos Campeões. Mais precisamente, em 2 de maio de 2021, no jogo de volta das semifinais da competição continental. Após 1 a 1 entre Barcelona e Paris Saint-Germain, Martens foi decisiva, marcando os dois gols barcelonistas na vitória por 2 a 1, que levou à decisão - também vencida pela equipe blaugrana, com goleada sobre o Chelsea, completando a Tríplice Coroa no futebol feminino europeu.

No Barcelona, Martens sofreu com a distância da família e com as lesões que começaram. Só viveu grandes momentos na Tríplice Coroa europeia de 2020/21 (Instagram)

Com a Tríplice Coroa, parecia que Martens voltava aos bons tempos. Chegou novamente motivada à seleção holandesa que disputaria o torneio olímpico no Japão. Contudo, foi quando veio um mau momento. Não exatamente pelo que se viu em campo: a atacante esteve em todos os minutos das Leoas Laranjas em campo pelos Jogos Olímpicos, e o desempenho não foi de todo decepcionante - quatro gols, todos na fase de grupos. Ainda assim, a impressionante marca de Vivianne Miedema na competição (10 gols) a transformaram de vez na grande protagonista holandesa no futebol feminino. E no momento em que poderia ter equilibrado isso, Martens fracassou: perdeu um pênalti aos 81', no tempo normal das quartas de final, contra os Estados Unidos, com 2 a 2 no placar. A Holanda seria eliminada nos chutes da marca do pênalti. E a atacante ficou às lágrimas após a derrota: sabia que o pênalti desperdiçado era o símbolo daquela partida. E, talvez, o símbolo de que o destaque trocara de pés na equipe laranja, aos olhos do público.

Para Martens, pior ainda foi não conseguir reverter tudo isso ao longo de 2021/22. No Barcelona, até colaborou na conquista da dupla coroa nacional (campeonato e copa), com bom desempenho - em La Liga, foram 16 gols em 21 jogos; na Copa da Rainha, dois, em três partidas. Contudo, as lesões voltaram a atormentar a atacante. Começando em novembro de 2021, com um problema na mão, que a fez ficar fora de uma convocação da seleção. Em março de 2022, outro problema, sofrido contra o Rayo Vallecano, pelo Campeonato Espanhol. No mês seguinte, justamente quando estava perto de voltar, machucou o músculo posterior da coxa, se ausentando da maior parte da reta final da temporada. Até teve minutos jogados nas decisões de Liga dos Campeões (perdida pelo Barcelona) e Copa da Rainha, mas chegou em baixa à Holanda para a Euro feminina. Na qual já começou sendo criticada pesadamente: para quem tinha sido a cara do título em 2017, as atuações eram tímidas demais. Lenta, Martens novamente sucumbia às marcadoras na ponta esquerda. Ajudava, sim - deu dois passes para gol, nos 3 a 2 contra Portugal, na fase de grupos -, mas passaram a ser comuns críticas de que a Holanda melhorava com a novata Esmee Brugts a substituindo. E Martens teve um duro golpe: contra a Suíça, ainda pelos grupos, de novo machucou o pé. Sem mais condições de jogo, foi cortada da Euro.

Martens já vinha sendo criticada ao jogar na Euro do ano passado, pela lentidão e por sucumbir à marcação. Antes que pudesse reagir, uma lesão a tirou do torneio (Andrew Kearns/CameraSport/Getty Images)

 Tantos reveses na carreira pediram mudanças. E Martens as fez. Começando pelo clube: antes mesmo da Euro, a atacante se transferiu para o Paris Saint-Germain, assumidamente para ficar mais perto da família e do país natal. Porém, o rendimento na primeira temporada pelo PSG foi baixo: a atacante só fez três gols em 16 jogos, no Campeonato Francês, e mais dois gols, em sete partidas na Liga dos Campeões feminina. Aqui e ali, seguiram dores musculares, dores no joelho... algo que fez Martens desabafar, em novembro do ano passado, ao site NU Sport: "Sabe o que chateia? É que você se sente bem de novo, e aí acontece novamente outra coisinha... acho chato. Eu me sinto tão bem nas partidas em que jogo... pelo menos, são pequenas lesões".

Martens ainda não brilhou no Paris Saint-Germain, mas a ida para a França já serviu para deixá-la mais tranquila (Gerrit van Keulen/ANP/Getty Images)

As lesões deram um refresco na reta final da temporada, é verdade. Porém, por precaução, Martens é costumeiramente substituída no Paris Saint-Germain, mesmo sendo titular. Talvez por isso, chegou mais preservada fisicamente à Copa. E se os cuidados físicos são necessários, na mente a jogadora celebra um grande momento. Recém-casada, Martens deu várias entrevistas recentes celebrando o quanto a relação com Benjamin van Leer, ex-goleiro (passou por Sparta Rotterdam, NAC Breda e até a reserva do Ajax), a ajudou nos duros momentos recentes, e ainda ajuda deixando boas memórias: "Eu me sinto bem (...) Minha vida privada é muito importante para mim. Se você está bem em casa, isso colabora no campo. Aproveitei o casamento com tudo, e atualmente estou muito feliz. Estava com muita vontade de me apresentar [à seleção], e algumas colegas estavam na cerimônia".

Se tanta motivação ajudar, e se as lesões minorarem, Martens já terá meio caminho andado para ser a protagonista que se acha que ela ainda pode ser pela seleção feminina. Capacidade técnica, ela seguiu tendo. E a carreira já longa que tem torna inabalável a grandeza da imagem que a atacante tem para quem acompanha futebol feminino no Reino dos Países Baixos.

(Joris Verwijst/BSR Agency/Getty Images)

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