sexta-feira, 30 de junho de 2023

A Holanda na Copa feminina: seleção de transição

Entre altos e baixos, a seleção feminina da Holanda recuperou algum ânimo para chegar à Copa que marcará a "passagem de bastão" de uma geração a outra (Rico Brouwer/Soccrates/Getty Images)

Transição. Eis a palavra que resume como chega a seleção feminina da Holanda (Países Baixos). para a terceira participação de sua história numa Copa do Mundo. Afinal de contas, vendo-se a lista de 23 convocadas, fica muito claro que se trata de uma "troca de guarda" nas Leoas Laranjas. Deve ser a última Copa de vários símbolos de uma geração que catapultou decisivamente o futebol feminino no país, com o título da Euro 2017 e o vice-campeonato na Copa de 2019. Talvez seja a despedida de Sherida Spitse, Daniëlle van de Donk, Lieke Martens, e certamente será a despedida de Stefanie van der Gragt (a zagueira já confirmou que sua carreira termina após a Copa, fazendo nela seus últimos jogos). Por outro lado, é só o primeiro Mundial de uma geração que já mostrou ter protagonistas capacitadas para manterem a Holanda com uma seleção competitiva: Daphne van Domselaar, Damaris Egurrola, Kerstin Casparij, Esmee Brugts. Caberá a elas, jogadoras, "definirem" em campo se essa transição terá um travo amargo de decepção, ou se terá a suavidade e a honra dadas por uma campanha decente em Nova Zelândia/Austrália - a começar pelo dia 23 de julho, às 4h30 de Brasília, contra Portugal, na cidade neozelandesa de Dunedin.

É bem verdade que a Holanda já chega para a Copa baqueada. Afinal de contas, ficará de fora aquela que teria tudo para ser o grande destaque, a grande condutora dessa transição com a bola nos pés, literalmente a capitã da seleção. A lesão que lhe rompeu o ligamento cruzado anterior do joelho esquerdo, em dezembro do ano passado, tirou as chances de Vivianne Miedema estar na terceira Copa de sua carreira. Ficará apenas na cabeça a curiosidade sobre o que uma das melhores atacantes do futebol feminino no mundo (pelo menos até a lesão) poderia fazer com a camisa laranja, cada vez mais completa ao ser escalada mais atrás, como armadora - sem contar a lembrança ainda viva dos dez gols em quatro jogos que fez, no torneio olímpico passado. 

A lesão que tirou Vivianne Miedema da Copa doeu em todos quantos gostam do futebol feminino... (David Price/Arsenal FC)

Se serve de consolo, Miedema não é só uma "ausência presente" na Holanda. A própria revelou, em abril: após cada jogo da seleção, participa de reuniões por vídeo com o técnico Andries Jonker e as colegas mais experientes, para discutirem como a equipe jogou - e o que pode melhorar. Faz parte da intenção de "Viv" para depois da carreira: ser treinadora. "Ele [Andries] sabe que eu gosto de discutir tática. É um debate bem aberto". De quebra, também nas datas FIFA de abril, ainda visitou as colegas em campo, mostrando como segue próxima - como mostrará, estando junto às convocadas no fim de semana do amistoso de despedida, contra a Bélgica, no próximo domingo, na cidade de Kerkrade. No entanto, Miedema cortou com bom humor qualquer ideia sobre ser uma "auxiliar especial" na comissão técnica que vai à Copa: "Eu quero ser treinadora da seleção, não quero ser auxiliar (risos)".

...mas Miedema segue muito próxima da seleção fora do campo, enquanto não volta (Rico Brouwer/Soccrates/Getty Images)

E a proximidade de Miedema ajuda a deixar claro: não, a Holanda não se desanima sem a sua melhor jogadora. Ao contrário. É quase unânime a impressão de todos quantos acompanham a primeira fase de preparação para a Copa, no centro de treinamentos da federação, na cidade de Zeist: a relação entre Andries Jonker e as jogadoras é ótima. Mais do que isso: elas "compraram" a ideia de Jonker, adaptaram-se melhor ao estilo direto do técnico. Nada mais distante da passagem curta e esquecível de Mark Parsons - não que o técnico anglo-americano tenha brigado abertamente ou desrespeitado as atletas, mas seu estilo mais calmo e conversado não se encaixou com o que o grupo frequente de convocadas prefere. 

Isso ficou claro, principalmente, ao longo das eliminatórias da Copa, iniciadas em setembro de 2021. A estreia - empate em 1 a 1 com a República Tcheca, em casa - já deixou claro que a Holanda tinha problemas. Tratava-se de uma equipe lenta, sem empolgar, sem convencer nem mesmo nas vitórias sobre Chipre (duas goleadas: 8 a 0 fora, 12 a 0 em casa - com cinco gols de Miedema). O outro jogo contra a República Tcheca, na quinta rodada, em novembro de 2021, simbolizou tudo isso: em Ostrava, as holandesas ficaram atrás no placar, perdendo por 2 a 1 até os 48 minutos do segundo tempo, quando Stefanie van der Gragt conseguiu um empate salvador. Uma decisão polêmica só aumentou o drama: com a eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia, em fevereiro de 2022, por decisão da federação, a Holanda se recusou inicialmente a enfrentar Belarus, aliada aos russos no conflito (e já vencida em campo, na quarta rodada das eliminatórias - 2 a 0, em Minsk). Enquanto isso, no grupo C das eliminatórias, a Islândia tomava a liderança, e a Holanda ficava arriscada a partir para a repescagem. Só aí, sob risco, a KNVB voltou atrás em sua decisão. E num jogo sem torcida e sem publicidade, em julho, pouco antes da Euro, as holandesas fizeram 3 a 0 nas bielorrussas

Mark Parsons, sucessor imediato de Sarina Wiegman na Holanda feminina, nunca conseguiu cativar plenamente - nem torcida, nem imprensa, nem as jogadoras. Mesmo com relação calma, acabou caindo (Rene Nijhuis/BSR Agency/Getty Images)

De quebra, a participação da Holanda na Euro de mulheres, em julho do ano passado, foi altamente decepcionante: mesmo só sendo eliminada na prorrogação, nas quartas de final, em quase nenhum momento a equipe laranja convenceu - contra a França, na eliminação, foi pressionada a ponto da goleira Daphne van Domselaar ser a melhor em campo. Ali ficou claro: por mais que houvesse boa vontade de parte a parte, Mark Parsons não conseguia fazer o time jogar como a torcida queria - e nem como as jogadoras queriam. Em agosto, ele foi demitido. E Andries Jonker chegou, tendo um jogo só com tudo valendo: o jogo direto contra a Islândia, na última rodada das eliminatórias, que valeria a vaga direta na Copa - com a Islândia liderando o grupo C, graças à goleada sobre Belarus (6 a 0) na penúltima rodada. Naquele 6 de setembro de 2022, em Utrecht, quem ganhasse estaria classificada, quem perdesse iria à repescagem, e o empate manteria as islandesas na frente. E num estádio repleto, as Leoas Laranjas sofreram diante de uma defesa fechada: foram 22 (!) chutes a gol, três bolas na trave... até que, aos 90' + 3, Esmee Brugts fizesse o gol do 1 a 0 e da vaga na Copa.  


Conseguir a vaga direta (com até mais facilidade do que para a Copa de 2019, na qual a Holanda superou Dinamarca e Suíça na repescagem) matou no nascedouro qualquer pressão que Andries Jonker pudesse ter sobre seu trabalho. Com tranquilidade, ele pôde aproveitar o único ponto positivo da passagem de Mark Parsons: as várias novatas que ganharam espaço na seleção, de Kerstin Casparij a Esmee Brugts. minimizando o estilo repetitivo da Holanda desde os últimos tempos de Sarina Wiegman, além de sinalizar essa mudança de geração. Basta citar que, das 23 convocadas para a campanha do vice-campeonato mundial em 2019, 12 voltarão a um Mundial - ou seja, metade do grupo foi renovada. Além disso, cinco das convocadas à Copa estiveram na campanha no Mundial sub-20 de 2018, na qual as neerlandesas chegaram às quartas de final: as três goleiras - Van Domselaar, Kop e Weimar -, Nouwen e Pelova.

Com o alívio da vaga, Jonker também pôde tentar algo que já tinha em mente desde o começo: fazer a equipe neerlandesa jogar com três zagueiras, tanto para evitar que Sherida Spitse sofresse com a intensidade no meio-campo, quanto para arrumar um espaço em que Damaris Egurrola, de tanto talento técnico como volante, pudesse se tornar titular de vez. E foi o que a Holanda começou a praticar, nos amistosos finais do ano passado. Sem a pressão do resultado, deu-se ao luxo de perder para a Noruega (1 a 0, em 11 de outubro), mas já indicou um bom caminho com as vitórias finais de 2022, sobre a Costa Rica (4 a 0, em 11 de novembro) e a Dinamarca (2 a 0, em 15 de novembro). O grande problema com que a Holanda chega à Copa do Mundo - além, obviamente, da falta que Miedema faz - foi visto nos amistosos deste ano. Já a partir dos dois jogos contra a Áustria, em fevereiro, ficou claro como a seleção ainda oscila, ainda comete erros por pura desatenção. Tanto que, no primeiro jogo, em 17 de fevereiro, as holandesas caíram por 2 a 1, graças a uma falha de Jackie Groenen, no fim; no segundo, quatro dias depois, mais concentradas durante os 90 minutos, golearam as austríacas sem dificuldade - 4 a 0.

De certa forma, isso foi visto novamente nos amistosos de abril. Não na falta de concentração, mas na falta de eficiência nas chances de gol. Contra a Alemanha, no dia 7, a Holanda jogou melhor. Criou pelo menos cinco oportunidades claras para marcar. Perdeu todas - e viu, numa bola parada (escanteio), as alemãs fazerem o 1 a 0 da vitória. Quatro dias depois, contra a Polônia, quase isso se repetiu: a seleção teve chances, mas precisou sair atrás no placar para se aprumar e rumar para a goleada (4 a 1). Tal falta de atenção pode ser perdoada nos amistosos, mas é altamente arriscada na Copa do Mundo. Ainda mais no grupo G, em que a Holanda terá os Estados Unidos dispensando apresentações - embora numa fase de entressafra -, mais Portugal sendo uma seleção que, mais do que talento (em Tatiana Pinto, Francisca "Kika" Nazareth e Ana Borges), tem um esforço notável, que já causou sérios problemas às holandesas na fase de grupos na Euro (vitória suada por 3 a 2), sem contar a incógnita chamada Vietnã. 

Desde o ano passado - e ainda mais agora, na reta final da preparação -, Andries Jonker reflete sobre novidades nas Leoas Laranjas (Rico Brouwer/Soccrates/Getty Images)

Para tanto, Andries Jonker vive a repetir: "Precisamos saber jogar em mais esquemas". E começa a tentar um esquema ofensivo e defensivo ao mesmo tempo: um 3-5-2 em que Brugts e Pelova são alas - Brugts na esquerda, Pelova na direita -, para manter alguma rapidez numa defesa lenta, possibilitando chegadas mais rápidas e de mais gente ao ataque. Para ambas, tudo bem: Brugts, por exemplo, já brincou, falando à emissora NOS ("Eu já joguei em todos os lugares, no ataque e no meio-campo, mas faltava jogar na defesa"). O que não quer dizer que as escolhas são sempre corretas: já nesta fase final de preparação, o técnico surpreendeu ao cortar da lista final a atacante Romée Leuchter, boa surpresa vista desde a Euro, destaque no título holandês do Ajax ("Achamos que Romée é uma atacante muito talentosa, e ela treinou bem, mas nem todas podem ir, é uma decisão difícil", lamentou o técnico). 

Surpresa maior ainda, merecendo um parágrafo à parte, foi deixar de fora da convocação final Fenna Kalma. Goleadora do Campeonato Holandês pelo Twente, nas últimas duas temporadas (em 2021/22, foram 33 gols em 24 jogos!), com transferência já anunciada para o Wolfsburg, Kalma se destacou até mesmo em termos estatísticos. De acordo com os critérios da IFFHS (Federação Internacional de História e Estatística do Futebol), nenhuma outra jogadora fez tantos gols no mundo em 2022 quanto ela - 45. Ainda assim, Kalma já tinha sido preterida na disputa da vaga aberta com a lesão de Miedema, para Beerensteyn. E sua ausência na lista geral das 23 jogadoras foi, de longe, o fato que mais chamou a atenção. Afinal, Kalma é considerada uma provável candidata a boa atacante no futebol feminino mundial, nos anos que virão.

Assim vai a Holanda para a sua terceira Copa do Mundo - com o amistoso de despedida contra a Bélgica no próximo domingo, viagem à Austrália no dia 7 e permanência na cidade neozelandesa de Tauranga durante a Copa. Em meio a uma transição. Na qual o nível de atenção e de concentração durante os jogos definirá se essa transição terá o gosto amargo da eliminação precoce ou o gosto saboroso de mais uma participação decente num grande torneio.

As 23 convocadas da Holanda para a Copa feminina (clique nos nomes e saiba mais sobre elas)

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