Parece esquisito que uma seleção masculina europeia tenha pretendido usar a Copa do Mundo como "balão de ensaio" para brilhar numa Euro. Foi o que a Holanda fez: a participação da Laranja na Copa de 2006 serviu para preparar a geração iniciada anos antes - personificada em Rafael van der Vaart, Wesley Sneijder, Arjen Robben e Robin van Persie - rumo à Euro 2008. Em que pese mais uma eliminação, nas quartas de final, as ótimas atuações da Oranje na fase de grupos daquela Euro deixaram a promissora impressão de que aquela geração poderia chegar a grandes feitos. Poderia trazer os Países Baixos de volta a estágios decisivos em grandes competições. Foi o que aconteceu na Copa de 2010. Na África do Sul, uma geração amadurecida e bem treinada mostrou um lado pragmático, como pouco se vira na história da seleção. E conseguiu uma campanha histórica, após algum tempo. Só faltou o que sempre falta para a equipe neerlandesa até agora: o título mundial.
É bem verdade que a Holanda demorou um pouco para ostentar o entrosamento invejável visto na Copa. Terminada a Euro 2008, Marco van Basten deixou a seleção, Bert van Marwijk (de passagem vitoriosa pelo Feyenoord) chegou, e demorou um pouco a ter bons resultados. Basta dizer que os primeiros jogos da equipe sob seu comando foram um empate contra a Rússia - 1 a 1, em 20 de agosto de 2008 - e uma derrota para a Austrália - 2 a 1, em Eindhoven, em 6 de setembro de 2008. Porém, logo que as eliminatórias da Copa começaram, a Laranja se impulsionou no grupo 9 da qualificação europeia: três vitórias em três jogos, contra Macedônia (2 a 1), Islândia (2 a 0) e Noruega (1 a 0). 2009 começou ainda com alguns pontos de interrogação alaranjados. A incerteza sobre o desempenho de Maarten Stekelenburg, começando a suceder Edwin van der Sar no gol; o início hesitante de Gregory van der Wiel na lateral direita; e o próprio esquema a ser adotado (o 4-3-3 velho de guerra ou o 4-2-3-1, com dois volantes protegendo mais a defesa?).
Todos, resolvidos nas eliminatórias. Stekelenburg chegou a perder a titularidade no Ajax, onde jogava, mas logo a retomou. Van der Wiel tomou a lateral direita para não perder mais - até pela falta de concorrência. Como dupla de volantes, Mark van Bommel (de volta à seleção, treinado pelo sogro Van Marwijk, após o afastamento voluntário nos tempos de Van Basten) e Nigel de Jong protegiam a zaga, de fato, fosse como fosse. No ataque, pouco havia a questionar: Rafael van der Vaart ia bem, Dirk Kuyt era dedicado como sempre, Wesley Sneijder decolava ao mudar do Real Madrid para a Internazionale, Arjen Robben também ganhava espaço para começar a brilhar após a transferência para o Bayern de Munique. Resultado? Goleadas (4 a 0 na Macedônia, na quinta rodada), um time cada vez mais entrosado, a primeira seleção europeia a garantir vaga na Copa de 2010 (em 6 de junho de 2009, já na sexta rodada, a classificação veio com um 2 a 1 na Islândia, fora de casa), e uma campanha com aproveitamento perfeito: oito jogos, oito vitórias. Desde a Alemanha nas eliminatórias europeias da Copa de 1982, não houvera campanha tão impressionante assim.
Os lances de Islândia 1x2 Holanda, pelas eliminatórias da Copa de 2010
A boa impressão só se consolidou mais ainda nos primeiros amistosos de 2010. Estados Unidos? 2 a 1, em Amsterdã (3 de março). México? Também 2 a 1, em jogo na Suíça (26 de maio), quando os 23 convocados já haviam sido selecionados. Gana? Uma goleada em Roterdã: 4 a 1 (1º de junho). A torcida já decorava o time (Stekelenburg; Van der Wiel, Heitinga, Mathijsen e Van Bronckhorst; Van Bommel e De Jong; Robben, Sneijder e Kuyt; Van Persie), as expectativas eram cada vez mais otimistas (ainda mais sobre Robben e Sneijder, os destaques respectivos de Bayern de Munique e Internazionale, finalistas da Liga dos Campeões 2009/10), e o amistoso da despedida antes da Copa, contra a Hungria, tinha tudo para terminar num clima de ampla alegria, com a goleada por 6 a 1. Mas não terminou: nos últimos minutos daquela goleada, Robben tentou um toque de calcanhar... e sentiu dores imediatas no músculo posterior da coxa. Parecia a senha para um corte que abateria demais as expectativas holandesas na Copa.
A lesão no músculo posterior da coxa que quase tirou Arjen Robben da Copa de 2010 doeu em toda a Holanda (Toussaint Kluiters/AFP/Getty Images) |
Aí apareceu o fisioterapeuta Dick van Toorn. Ele acalmou a comissão técnica, a federação, a torcida: ninguém precisaria cortar ninguém do Mundial. Os outros 22 convocados poderiam viajar normalmente para a África do Sul - e Robben ficaria com ele, num trabalho de recuperação de dia e noite, na semana de abertura da Copa, para só então viajar ao país-sede. Foi o que aconteceu: na estreia pelo grupo E, contra a Dinamarca (14 de junho de 2010, em Joanesburgo), e no segundo jogo, contra o Japão (19 de junho de 2010, em Durban), nada de Robben: Van der Vaart jogava na direita. Duas vitórias: 2 a 0 contra a Dinamarca, 1 a 0 contra o Japão. Mas a Holanda impressionava pouco. No terceiro jogo, contra Camarões, já eliminada no grupo, Robben já estava relacionado. A Laranja abriu o placar, com Van Persie; tomou o empate com Samuel Eto'o, já no segundo tempo. Aí, Robben entrou em campo, aos 73', no lugar de Kuyt. Num de seus únicos lances, giro para cima do zagueiro Rigobert Song, chute na trave, e Klaas-Jan Huntelaar aproveitou o rebote: 2 a 1, Oranje com 100% de aproveitamento na fase de grupos. O mais importante: Robben já podia voltar a ser titular.
O gol de Huntelaar, em jogada de Robben, em Holanda 2x1 Camarões, pela fase de grupos da Copa de 2010, na transmissão do SporTV, com a narração de Roby Porto
Nas oitavas de final, em Durban, contra a Eslováquia, em 28 de junho de 2010, Robben estava entre os 11 que começaram a partida. E foi dele a prova definitiva da recuperação (ainda que parcial): o gol do 1 a 0. O que não quer dizer que o jogo foi fácil: no segundo tempo, os eslovacos cresceram, criaram chances para o empate, só sendo impedidos por boas defesas de Stekelenburg. O alívio só veio quando Sneijder fez 2 a 0. Mesmo com um gol tardio contrário - Vittek marcou de pênalti, no último lance do jogo -, a Holanda já estava nas quartas de final daquela Copa. Mas ainda não atraía a confiança. Ainda não contentava a torcida. Ainda dava a impressão de que o caminho teria ponto final contra o Brasil, adversário das quartas de final, no dia 2 de julho de 2010, em Port Elizabeth.
Pelo menos no primeiro tempo, essa impressão se confirmou. Contra uma Holanda vitimada no aquecimento (lesionado, Mathijsen foi substituído às pressas por André Ooijer na escalação), o Brasil abriu o placar, envolvendo a Holanda com um desempenho veloz e eficiente - e poderia ter até conseguido um segundo gol, não fosse tremenda defesa de Stekelenburg, em arremate de Kaká. No intervalo, Van Marwijk foi enfático na crítica ao comportamento dos jogadores, falando coisas do tipo "vocês vieram aqui para jogar ou para vê-los jogar?!". E os holandeses voltaram, mais voluntariosos. Tiveram alguma sorte, no desacerto entre Júlio César e Felipe Melo que rendeu o empate, após lançamento de Sneijder que foi direto para as redes. Cresceram no jogo. E o "doorkopcorner", como se chama em holandês a jogada ensaiada típica de escanteios - cobrança desviada no primeiro pau para a finalização de outro -, rendeu a virada de Sneijder, se confirmando ali como o grande destaque neerlandês na Copa. A expulsão de Felipe Melo confirmava: mais do que o jogo, a Holanda ganhara na questão da mentalidade. Fora atrás da virada, e a conseguira. Estava nas semifinais da Copa, na vitória mais marcante daquela campanha. Já servia para entusiasmar a torcida. Nem tanto a imprensa, ainda reticente com aquele jeito pragmático.
Os melhores momentos de Holanda 2x1 Brasil, quartas de final da Copa de 2010, na transmissão da TV Globo, com a narração de Galvão Bueno
E a semifinal, em 6 de julho de 2010, no Green Point da Cidade do Cabo, contra o Uruguai, deu alguma razão às críticas. O belíssimo gol com que Van Bronckhorst abriu o placar, dos mais bonitos daquela Copa, fez crer numa vitória fácil. Nada mais enganoso, como mostrou o empate de Diogo Forlán - em falha de Stekelenburg, enganado pela bola - e o crescimento da Celeste Olímpica desde então. Aí, a impressão era de virada uruguaia. Coube à dupla que simbolizava aquela campanha, aquela perfeição pragmática vista desde as eliminatórias, resolver a chegada da Oranje à final: Sneijder fez 2 a 1, Robben marcou o terceiro. Maxi Pereira ainda devolveu leve esperança aos charrúas, diminuindo para 3 a 2 nos acréscimos (90' + 2), mas os Países Baixos alcançavam a terceira decisão de Copa do Mundo na história de seu futebol de homens. Contra a Espanha, outra seleção que nunca vencera um Mundial. Nunca a conquista fora tão possível.
Todavia, o modo como a Holanda escolheu tentá-la é que foi, no mínimo, polêmico. Ao invés de ser eficiente, a seleção abóbora foi até violenta na decisão do 11 de julho de 2010, em Joanesburgo - e a solada de Nigel de Jong no peito de Xabi Alonso, aos 28', foi a prova de como a equipe neerlandesa escolhera deter a Espanha, mais técnica, na força. No único momento de brilho daquela equipe pragmática durante a final, um momento que entraria para o anedotário do futebol holandês: aos 62', lançamento de Sneijder, Robben dominou perto da área, livre da marcação de Carles Puyol. Era ele e Iker Casillas, saindo do gol. O camisa 11 tocou; com o tornozelo, Casillas salvou a Espanha, desviando para fora. Assim como a bola de Robert Rensenbrink na trave, na final de 1978, "de teen van Casillas" ("o dedinho do pé de Casillas", em holandês) evitava a apoteose holandesa.
Apoteose que foi ficando mais longe, conforme o fim do jogo se aproximava. 90 minutos encerrados, vinha a prorrogação, a Holanda se defendia com mais afinco - e mais violência, conforme indicava a expulsão de Heitinga... até que veio o gol de Andrés Iniesta, a quatro minutos do encerramento dos 30 minutos extras. A geração espanhola, que já tirara a pecha de "perdedora" do país com o título europeu de 2008, se consagrava definitivamente com o título mundial.
Os melhores momentos de Holanda 0x1 Espanha, final da Copa de 2010, na transmissão da TV Bandeirantes, com a narração de Luciano do Valle
Para a Holanda, uma sensação controversa. Apesar das críticas de Johan Cruyff, que declarara torcer para a Espanha na final; apesar da sensação incômoda dos mais puristas com aquele estilo tão contrário ao Futebol Total - a revista Hard Gras chegou a lamentar que "duas horas haviam destruído uma tradição de quase 40 anos"; apesar da impressão de que uma eventual vitória traria discussões sobre "1974 ou 2010", como as que se têm no Brasil entre 1982 e 1994... a Holanda tivera ótimos jogadores em Sneijder e Robben, dois dos melhores daquela Copa. Tivera um esforço inegável. Merecia aplausos, como os que teve dos que lotaram a Museumplein, a Praça dos Museus, na festa da recepção aos vice-campeões, em 13 de julho de 2010.
Afinal, tratava-se de uma seleção que vencera todos os jogos das Eliminatórias. E quase todos os jogos da Copa em si - algo que só o Brasil de 1970 conseguiu. Foi uma seleção quase perfeita. Faltou só um jogo. O mais importante...
Os convocados da Holanda para a Copa de 2010
Goleiros
1-Maarten Stekelenburg (Ajax) - 7 jogos, 6 gols sofridos
16-Michel Vorm (Utrecht) - não jogou
22-Sander Boschker (Twente) - não jogou
Defensores
5-Giovanni van Bronckhorst (Feyenoord) - 7 jogos, 1 gol
3-John Heitinga (Everton-ING) - 7 jogos
4-Joris Mathijsen (Hamburgo-ALE) - 6 jogos
2-Gregory van der Wiel (Ajax) - 5 jogos
12-Khalid Boulahrouz (Stuttgart-ALE) - 2 jogos
13-André Ooijer (PSV) - 1 jogo
15-Edson Braafheid (Celtic-ESC) - 1 jogo
Meio-campistas
10-Wesley Sneijder (Internazionale-ITA) - 7 jogos, 5 gols
6-Mark van Bommel (Barcelona-ESP) - 7 jogos
8-Nigel de Jong (Manchester City-ING) - 6 jogos
23-Rafael van der Vaart (Real Madrid-ESP) - 5 jogos
20-Ibrahim Afellay (PSV) - 3 jogos
14-Demy de Zeeuw (Ajax) - 2 jogos
18-Stijn Schaars (AZ) - não jogou
Atacantes
9-Robin van Persie (Arsenal-ING) - 7 jogos, 1 gol
11-Arjen Robben (Bayern de Munique-ALE) - 5 jogos, 2 gols
7-Dirk Kuyt (Liverpool-ING) - 7 jogos, 1 gol
17-Eljero Elia (Hamburgo-ALE) - 5 jogos
21-Klaas-Jan Huntelaar (Milan-ITA) - 4 jogos, 1 gol
19-Ryan Babel (Liverpool-ING) - não jogou
Técnico: Bert van Marwijk
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