quarta-feira, 3 de agosto de 2022

A Holanda nas Copas masculinas: 1990 - Algo de podre

 
A Holanda chegou para a Copa de 1990 badalada: cheia de estrelas, campeã europeia naquele momento, cogitada como campeã... tudo se perdeu nas crises internas e numa péssima campanha (fanpicture.ru)

(Aqui, antes de mais nada, um texto mais completo e profundo sobre a participação da Holanda na Copa de 1990)

Como já dito nesta série, após a final da Copa de 1978, a geração que transformara a Holanda num país de alto nível no futebol mundial foi deixando a seleção aos poucos. E também aos poucos, os Países Baixos foram mergulhando no ostracismo: fora da Copa de 1982, da Euro 1984, da Copa de 1986 (desta até estiveram perto, mas caíram para a Bélgica na repescagem das eliminatórias europeias)... contudo, ao longo daquela "década perdida", craques foram surgindo aos borbotões na Holanda. Eles resgataram a imagem do país, com o título da Euro 1988, até agora o único da Laranja no futebol masculino. Aumentaram as expectativas pelo que poderiam fazer na Copa de 1990... mas protagonizaram uma das maiores decepções da seleção em sua história.

A decepção doeu mais por aquela seleção ser, como já dito, recheada de jogadores admirados Europa afora. Na defesa, Ronald Koeman era garantia de segurança, e suas cobranças de falta e pênalti faziam dele um "zagueiro artilheiro" como poucos, enquanto Frank Rijkaard se alternava entre miolo de zaga e meio-campo, com classe altamente incomum. Também se alternava - mas entre meio-campo e ataque - Ruud Gullit, dono de força física admirável, ostentando espírito de liderança, e capacidade de finalização quando chegava à área. Capacidade tão grande quanto a de Marco van Basten, ainda hoje visto como um dos mais icônicos atacantes daquela geração - classe nos movimentos, técnica para voltar e até criar jogadas, precisão absoluta nas conclusões a gol. Muitos coadjuvantes também eram bons: o goleiro Hans van Breukelen - o mais experiente da escalação - tinha bom nível e era um dos líderes do grupo, os laterais (Berry van Aerle na direita, Adri van Tiggelen na esquerda) eram voluntariosos, Jan Wouters tinha a vitalidade na marcação que permitia a Rijkaard circular mais livremente pelo campo.

Todavia, vários deles eram figuras de personalidade forte. E se aceitaram mais humildemente (e até se entrosaram com) a liderança inquestionável de Rinus Michels, técnico no título da Euro-88, estranharam-se com o sucessor de Michels no banco, Thijs Libregts, que treinou a Holanda nas eliminatórias - e que já tecera críticas a Gullit, anos antes, resvalando no racismo. Ao longo da campanha nas eliminatórias europeias, entre 1988 e 1989, Libregts ainda tomou atitudes estranhas, como colocar Van Basten no banco de reservas, sem que ele estivesse sofrendo com as renitentes lesões no tornozelo que encurtaram sua carreira. Pelo talento e pelo entrosamento da equipe, a Oranje conseguiu chegar à Copa de 1990 como vencedora do grupo 4 da qualificação. Mas os triunfos magros contra Finlândia e País de Gales, e as atuações inferiores contra a Alemanha, rival marcante e também integrante do grupo, indicavam: em apenas um ano, a magia da campanha campeã europeia se acabara. Como se não bastasse, Gullit sofria com uma lesão no joelho, que o tirou de boa parte da temporada 1989/90 - pelo Milan, por exemplo, o ponta-de-lança só voltou a tempo de jogar (e vencer pela segunda vez) a Copa dos Campeões da Europa.

O ambiente entre Libregts e os jogadores só piorava. A volta de Rinus Michels à federação holandesa - daquela vez, nos bastidores, como diretor técnico da entidade - aumentava a "fogueira" em que o técnico ardia: havia rumores de que Michels manobrava para ter mais comando em campo do que o próprio treinador. Em março de 1990, a três meses da Copa começar, o limite: alguns líderes do grupo (Van Breukelen, Koeman, Van Basten, o lesionado Gullit) impuseram a Rinus Michels a opção - ou Thijs Libregts saía da seleção, ou a coisa ficaria ainda mais grave. Pesado demais para o técnico, que de fato foi demitido. Os "cardeais" tinham até uma alternativa para treinar a Holanda na Copa: ninguém menos do que Johan Cruyff, então já comandando o Barcelona, respeitado por todos eles. Então, a federação optou por oferecer aos jogadores uma lista tríplice de "candidatos" a técnico no Mundial: Cruyff, Leo Beenhakker (treinando o Ajax) e Aad de Mos (então no comando do Anderlecht-BEL). Claro, o grupo elegeu Cruyff. Definido o treinador para a Copa, certo? Errado: em decisão até hoje questionada, Rinus Michels preferiu subverter o resultado da votação, trazendo Leo Beenhakker.

Leo Beenhakker foi escolhido para treinar a Holanda na Copa de 1990 - à revelia de uma votação do grupo de jogadores. Pagou o preço num péssimo ambiente (Arquivo ANP)

Beenhakker convocou todos os destaques da Holanda - recuperado dos problemas no joelho, Gullit conseguiu estar entre os 22 chamados. Novatos de talento, como o meio-campo Richard Witschge e o atacante Bryan Roy, também figuraram na convocação. Mas de nada adiantava ter um grupo considerado entre os favoritos ao título mundial se o ambiente dentro dele estava em polvorosa. Era o caso: os jogadores se estranhavam entre eles - e carregavam a irritação pelo que julgavam "traição" da federação, Rinus Michels à frente, no caso da votação para a escolha do técnico. Falando nele, aliás, Beenhakker era tratado como figura decorativa pelos jogadores.

E se ninguém fora do ambiente interno sabia de todo aquele caos, passou a desconfiar depois dos péssimos resultados holandeses na primeira fase, pelo grupo F da Copa. Na estreia, contra o Egito, esperava-se goleada da Laranja; não só o que se viu foi um empate em 1 a 1, como os egípcios mereceram mais a vitória em Palermo. Na segunda partida, outro empate com desempenho irritante e lento da Holanda: 0 a 0 com a Inglaterra. Na concentração holandesa durante o Mundial - o hotel Kafara, em Palermo -, o astral era tão baixo que Van Basten e Gullit chegaram a pensar em pedir dispensa durante a Copa. Ficaram nela, mas no último jogo pela fase de grupos, mais um empate: 1 a 1 com a Irlanda. O fato do juiz daquela partida, o francês Michel Vautrot, ter pedido mais empenho aos capitães das duas seleções, diante do marasmo nos minutos finais - o empate classificava as duas para as oitavas de final -, dá uma noção de como a impressão da Holanda na Copa de 1990 era péssima.

Veio a punição: iguais em todos os critérios, Holanda e Irlanda foram para um sorteio de definição de segundo e terceiro colocados no grupo F - e a Laranja ficou em terceiro. Nas oitavas de final, pegaria a arquirrival Alemanha, com uma geração também famosa e brilhante, sedenta de vencer a vizinha geográfica após a derrota na semifinal da Euro 1988. E no jogo em Milão - um "clássico indireto" entre o Milan de Rijkaard-Gullit-Van Basten e a Internazionale de Brehme-Matthäus-Klinsmann -, os neerlandeses até começaram bem, como nunca haviam estado naquela Copa. Mas desentendimentos entre Rijkaard e o atacante Rudi Völler, ainda no primeiro tempo, culminaram com a expulsão de ambos, incluindo até cusparada de Rijkaard. O cenário ficou melhor para a Alemanha, que cresceu, fez os gols no segundo tempo, e se classificou: 2 a 1.

Até agora, talvez para sempre, nomes como Gullit e Koeman lamentam a chance que perderam em 1990. Uma das gerações mais brilhantes que a Holanda já teve em campo perdeu uma tremenda chance de fazer grande papel, numa Copa em que todos esperavam isso. Porque, como se soube depois, havia algo de podre no Reino dos Países Baixos.

Os convocados da Holanda para a Copa de 1990

Goleiros
1-Hans van Breukelen (PSV) - 4 jogos, 4 gols sofridos
16-Joop Hiele (Feyenoord) - não jogou
22-Stanley Menzo (Ajax) - não jogou

Defensores
2-Berry van Aerle (PSV) - 4 jogos
3-Frank Rijkaard (Milan-ITA) - 4 jogos
4-Ronald Koeman (Barcelona-ESP) - 4 jogos, 1 gol
5-Adri van Tiggelen (Anderlecht-BEL) - 4 jogos
13-Graeme Rutjes (Mechelen-BEL) - 1 jogo
18-Henk Fräser (Roda JC) - 1 jogo
21-Danny Blind (Ajax) - não jogou

Meio-campistas
10-Ruud Gullit (Milan-ITA) - 4 jogos, 1 gol
11-Richard Witschge (Ajax) - 4 jogos
6-Jan Wouters (Ajax) - 4 jogos
7-Erwin Koeman (Mechelen-BEL) - 1 jogo
8-Gerald Vanenburg (PSV) - 1 jogo
20-Aron Winter (Ajax) - 1 jogo

Atacantes
9-Marco van Basten (Milan-ITA) - 4 jogos
12-Wim Kieft (PSV) - 4 jogos, 1 gol
17-Hans Gillhaus (Aberdeen-ESC) - 3 jogos
14-John van't Schip (Ajax) - 2 jogos
19-John van Loen (Roda JC) - 1 jogo
15-Bryan Roy (Ajax) - não jogou

Técnico: Leo Beenhakker

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