sexta-feira, 7 de junho de 2019

Há 30 anos, o futebol surinamês chorou - e o holandês também

Estes jogadores foram vítimas de um desastre aéreo que fez o futebol de Holanda e Suriname entrar em luto, no dia 7 de junho de 1989 (wedstrijd.tips)

Superga, Itália, 4 de maio de 1949, com o Torino. Munique, Alemanha, 6 de fevereiro de 1958, com o Manchester United. Lima, Peru, 8 de dezembro de 1987, com o Alianza Lima. La Unión, Colômbia, 28 de novembro de 2016, com a Chapecoense. Periódica e infelizmente, o futebol é vitimado por histórias tristes de equipes que encontram seu fim num desastre aéreo. Seja com alguns sobreviventes carregando as marcas das tragédias (caso do Manchester United e da Chapecoense), seja matando todos a bordo (casos de Torino e Alianza Lima), quedas de avião enchem o futebol de pranto, esporadicamente.

Há exatos 30 anos, uma tragédia aérea atingiu em cheio o futebol da Holanda - mais precisamente, um dos mais longínquos mananciais de talentos que acabam defendendo o país europeu: a colônia de jogadores com ascendência ou local de nascimento no Suriname. O país da América do Sul ("futebolisticamente", da América Central - joga pela CONCACAF) que foi colônia holandesa entre 1667 e 1954, e só ficou definitivamente independente em 1975, chorou a morte de vários integrantes do "Onze Colorido", combinado que estreitou as relações do futebol entre a antiga colônia e a antiga metrópole.

O Espreme a Laranja usou o texto de um amigo para lembrar a tragédia de Zanderij, em 7 de junho de 1989. Ubiratan Leal, comentarista dos canais ESPN (e o "Livro" das aparições no Desimpedidos), escreveu este texto em 2007, para o Balípodo, blog de futebol que mantinha então. Segue o texto de Ubiratan, com pequenas atualizações para 2019.

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Gullit, Rijkaard, Menzo, Winter, Roy, Blinker, Seedorf, Davids, Kluivert, Hasselbaink, Castelen, Elia, Virgil van Dijk, Wijnaldum, entre dezenas de outros menos conhecidos. A lista de jogadores holandeses que nasceram no Suriname ou têm ascendência surinamesa é enorme e muitos pensam como seria a seleção da antiga Guiana Holandesa se todos eles defendessem o país sul-americano. Bem, uma reunião dessa já foi feita e resultou em uma das maiores tragédias da história do futebol holandês e surinamês.

Na década de 1980, o assistente social surinamês Sonny Hasnoe teve a idéia de promover um amistoso de um combinado de jogadores holandeses de raízes no Suriname com o Robinhood, campeão local. O dinheiro arrecadado seria levado para obras sociais em Bijlmer, bairro na periferia de Amsterdã onde vive boa parte da comunidade surinamesa na Holanda. Além disso, ele pretendia motivar os jovens de Bijlmer a se manterem afastados da criminalidade ao se espelhar em surinameses bem sucedidos no esporte.

O time se chamou Kleurrijk Elftal (“Onze Colorido” em holandês). Foi um grande sucesso. Tanto que, três anos depois, Hasnoe resolveu repetir a dose, mas em algo maior que um amistoso. O Kleurrijk Elftal disputaria um torneio amistoso – chamado Boxel Kleurrijk Tournooi – com Boxel, Robinhood e Transvaal, três grandes times do Suriname. Para atrair ainda mais a atenção para o projeto, foram convidados jogadores importantes como Ruud Gullit, Stanley Menzo, Frank Rijkaard, Aron Winter, Bryan Roy e Regi Blinker. Todos com passagem pela seleção holandesa em algum momento.


O "Onze Colorido" dos jogadores surinameses que atuavam na Holanda, em 1987 (Rayen Bindraban)

Os jogos estavam marcados para o início de junho e os grandes clubes holandeses não liberaram os atletas. Com isso, o Kleurrijk Elftal teve de ser formado por nomes secundários, vindos de clubes como De Graafschap, NAC Breda, Volendam e Willem II. Alguns, como Gullit e Rijkaard, não foram liberados por seus clubes. Outros, como o atacante Winston "Winnie" Haatrecht, ainda tinham partidas a disputar - Haatrecht jogaria o play-off de acesso à primeira divisão, pelo Heerenveen. Dos nomes famosos do "Onze Colorido", só dois jogadores do Ajax, o goleiro Stanley Menzo e o atacante Henny Meijer, viajaram a Paramaribo. Mas tiveram de fazê-lo em um vôo separado do resto do time. Foi a sorte deles. 

Em 7 de junho de 1989, Will Rogers, o piloto do vôo PY764 da SLM (empresa aérea surinamesa), errou o cálculo na aproximação ao aeroporto internacional de Zanderij, cidade na região metropolitana de Paramaribo. A 25m sobre o solo, um dos motores da aeronave bateu em uma árvore. Em seguida, a asa direita se chocou em outra árvore e causou a queda do DC-8 de cabeça para baixo. Todos os nove tripulantes e 167 dos 178 passageiros morreram. Até hoje, é o pior acidente aéreo da história do Suriname. Investigações posteriores revelaram que o avião - um DC-8 Super 62 - voou em altitude mais baixa do que a recomendada, e que a tripulação estava mal preparada sobre os procedimentos técnicos daquele modelo de aeronave. Will Rogers, por exemplo, já não tinha o brevê - espécie de "carteira de habilitação" - válido, e tinha idade acima da permitida para pilotar um DC-8 (tinha 66 anos).


A imagem do desastre em Zanderij (ANP)
Sobrou pouco do Kleurrijk Elftal. Dos 19 membros da delegação – 18 jogadores e o técnico – apenas três sobreviveram. Faleceram:

Lloyd Doesburg (goleiro do Ajax, 29 anos)
Florian Vijent (goleiro do Telstar, 27)
Ruud Degenaar (defensor do Heracles, 25)
Andy Scharmin (defensor do Twente, 21) 
- Ortwin Linger (defensor do Haarlem, 21 - faleceu três dias depois do acidente, em razão dos ferimentos)
- Ruben Kogeldans (defensor do Willem II, 22)
- Fred Patrick (meia-atacante do Zwolle, 23)
- Steven van Dorpel (atacante do Volendam, 23) 
- Wendel Fräser (atacante do SVV, 22)
- Elfried Veldman (atacante do De Graafschap, 23)
Virgall Joemankhan (meia do Cercle Brugge, 20)
Andro Knel (meia-atacante do NAC Breda, 21)
- Frits Goodings (Wageningen, 25)
- Jerry Haatrecht (Neerlandia’31, 25)
- Nick Stienstra (técnico, 33).

Os jogadores sobreviventes também viram suas carreiras se interromperem por causa daquele acidente. Sigi Lens (atacante do Fortuna Sittard, 25 anos) e Edu Nandlal (Volendam, 25 anos) encerraram a carreira devido às sequelas. O primeiro teve uma complicada fratura na pélvis e o segundo ficou tetraplégico. Radijn de Haan (Telstar, 20 anos) sofreu fratura em uma vértebra e foi o único a voltar aos gramados. No entanto, nunca se recuperou completamente da lesão e abandonou a carreira.

Ainda que as grandes estrelas batavo-surinamesas tenham escapado, o trauma foi tão grande que nunca se tentou organizar uma nova versão do Kleurrijk Elftal - embora a partir de 1993, por iniciativa de Stanley Menzo, tenha surgido outro combinado de jogadores surinameses, o Suriprofs, que joga periodicamente em partidas festivas ou beneficentes. No estádio Andre Kamperveen, o principal de Paramaribo, há um monumento em memória ao 11 Colorido de 1989. Um time que morreu ao tentar ajudar a integração de surinameses na Holanda.


O monumento em Suriname, lembrando as vítimas do desastre (Reprodução/wedstrijd.tips)
Curiosidades

- Até hoje, o futebol holandês tem personagens ligadas ao acidente. Winnie Haatrecht havia sido convocado para o Kleurrijk Elftal, mas desistiu. Seu irmão Jerry foi em seu lugar e esteve entre as vítimas fatais. O choque foi tão grande que Winnie preferiu a solidão. Deixou o Heerenveen para se esconder no La-Chaux-de-Fonds, da segunda divisão suíça. Encerrou a carreira no obscuro TOP Oss, da Holanda. Depois de pendurar as chuteiras, virou empresário de jogadores. Entre seus clientes estiveram Afonso Alves e Ryan Babel.

- Outro que virou empresário foi Sigi Lens. Ele trabalhou com nomes como Landzaat, Ooijer, Reiziger, Bogarde, Boateng, Van Bronckhorst e Melchiot. De quebra, se Sigi não pôde seguir jogando, um parente seu emplacou no futebol: seu sobrinho, Jeremain Lens, hoje no Besiktas-TUR. Jeremain defendeu a seleção da Holanda em 34 partidas, fez 8 gols, e esteve na Copa de 2014.

- O meia Romeo Castelen tinha apenas seis anos na época do acidente, mas também está ligado à tragédia. Sua irmã e sua mãe estavam no vôo e também morreram.


Andro Knel virou, postumamente, o símbolo de um elo que passou a ligar Sparta Rotterdam a NAC Breda (VI Images)

- Talvez a história mais bonita ligada ao acidente seja a que envolve Andro Knel. O meia-atacante era ídolo do Sparta Rotterdam, clube em que começou, e no NAC Breda, que defendia desde 1988. Os torcedores dos dois clubes decidiram criar, juntos, um monumento em sua memória. Durante esse tempo, as duas torcidas começaram a nutrir grande amizade e, no décimo aniversário da morte do jogador, editaram em conjunto uma revista sobre a vida do jogador. Desde então, sempre que Sparta e NAC se enfrentam num campeonato, estejam na primeira ou na segunda divisão holandesas, os torcedores se encontram para disputar uma partida informal. O vencedor fica com o Troféu Andro Knel até o jogo seguinte.

Ubiratan Leal (colaborações de Felipe dos Santos Souza)

Um comentário:

  1. QUE TRISTE. FICA NA IMAGINAÇÃO SE ESSA SELEÇÃO JOGASSE NA AMÉRICA DO SUL E ESSA GERAÇÃO DE CRAQUES TAMBEM. COMO SERIA O CAMPEONATO LOCAL.

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