Parece até que estava escrito. Em "Koning Voetbal" (em holandês, "Rei Futebol"), livro lançado em 1989 para celebrar os 100 anos da federação holandesa, havia uma cidadã entrevistada. A história dela servia para mostrar como o futebol feminino caminhava na Holanda, pouco a pouco: então, já havia como uma jogadora pelo menos começar a carreira no país, antes de obrigatoriamente correr mundo para se profissionalizar - afinal, a modalidade ainda era amadora. Essa cidadã atuava então no North Carolina Tar Heels, equipe universitária dos Estados Unidos. O nome dela? Sarina Wiegman, meio-campista defensiva. O tempo passou e, 30 anos depois, caberá a Sarina treinar a seleção feminina da Holanda na Copa do Mundo. Mais um passo na consolidação de seu nome como um dos mais importantes da história do futebol feminino holandês.
Nascida em 26 de outubro de 1969, na cidade de Haia, Sarina começou a jogar aos seis anos, no ESDO, clube amador onde atuava seu irmão. E foi bem vinda pelos colegas: havia sempre um lugar para ela jogar entre os meninos, porque quase sempre ela marcava gols nos jogos entre crianças. E quase sempre surpreendia os adversários. Até que houvesse o indesejável, como ela lamentava no "Koning Voetbal" em 1989: "Certa vez, anularam dois gols meus, porque eu era menina". Para resolver tal problema, o ESDO até criou um departamento de futebol feminino, em 1977. Já era tarde, conforme Sarina explicou há 30 anos: "Eu queria mais. Por isso, fui para o Celeritas, onde eles já tinham tanto um time feminino de juniores quanto um de adultas".
No Celeritas, clube amador de Haia, a volante se desenvolveu nas equipes de mulheres. A ponto de ganhar sua primeira convocação para a seleção da Holanda, em 1986. No ano seguinte, Wiegman estreou pelas Leoas Laranjas, num amistoso contra a Noruega (curiosamente, jogo em que o treinador da equipe holandesa foi... Dick Advocaat, que faria fama entre os homens). Mais do que isso: ainda em 1987, ela deixou o Celeritas e foi para o KFC '71, clube tradicional no futebol feminino - pelo qual ganhou a Copa da Holanda, então amadora para mulheres, na temporada 1986/87. Mas Sarina precisava então de um futuro profissional além do futebol. Encontrou-o nos Estados Unidos, como já era habitual.
Sarina despontou no KFC '71, mas teve de deixar a Holanda para ter a experiência profissional no futebol feminino (Reprodução) |
Em 1988, disputando o Torneio de Exibição da FIFA pela seleção da Holanda, a meio-campista conheceu Anson Dorrance, então técnica da seleção norte-americana. Dorrance fez um convite duplo a Sarina: para ir estudar na Universidade da Carolina do Norte e para jogar pelo North Carolina Tar Heels, time da universidade. Claro, a jogadora aceitou. Foi para a faculdade em 1989, começou a jogar pelo Tar Heels (onde teve no mesmo time ícones norte-americanos do futebol, como Mia Hamm e Kristine Lilly), e comemorou o título universitário nacional no mesmo ano. Vivendo nas melhores condições possíveis para jogar, Wiegman se formou em Educação Física enquanto jogava. E só restava a ela dizer em seu depoimento a "Koning Voetbal", em 1989: "O futebol feminino só poderá ser algo na Holanda quando uma competição nacional sair do papel. (...) Significa algo o fato de que só os países que mantêm uma liga feminina na Europa tenham participado da Euro".
Diplomada e campeã nos Estados Unidos, Sarina Wiegman voltou à Holanda em 1990, e encontrou o mesmo cenário amador com o qual já se acostumara. Restou a ela se tornar professora de Educação Física em escolas, até para manter a forma e continuar jogando pela seleção da Holanda, na qual já era titular absoluta. Só em 1994 ela aceitou voltar a um time, o Ter Leede. E nele ficou, conquistando lá dois campeonatos femininos holandeses (2000/01 e 2002/03) e uma Copa da Holanda (2000/01). Paralelamente, ganhara respeito pela seleção da Holanda: nas Leoas, fez 104 partidas, entre 1987 e 2001. Marcou poucos gols (3), até por se dedicar mais à marcação. Mas seu espírito de liderança ficou notável. A ponto de merecer elogios de Louis van Gaal quando chegou à 100ª partida pela seleção, em 2001 - Sarina foi a primeira futebolista holandesa a alcançar isso, antes mesmo de Frank de Boer alcançar 100 jogos pela seleção masculina, em 2003. Num discurso em 2001, Van Gaal elogiou: "Eu respeito muito Sarina. Para os homens, tudo chega pronto e arrumado. Para as mulheres é tudo mais difícil".
No ADO Den Haag, Sarina despontou como treinadora (vrouwenvoetbalnederland.nl) |
Como treinadora, respeito gradual
Em 2003, aos 34 anos, grávida do segundo filho, Sarina decidiu encerrar a carreira. Se jogara no Ter Leede, no Ter Leede também começaria a treinar. E começaria com muito sucesso: na última temporada amadora do futebol feminino na Holanda, o clube conquistaria a "dupla coroa", vencendo o campeonato e a copa holandeses. Já serviu para que o ADO Den Haag contratasse Wiegman para treinar a nascente equipe feminina, que entraria na primeira Eredivisie feminina profissional, em 2007/08. Se nunca jogara pelo Den Haag em sua carreira, mesmo tendo nascido em Haia, Sarina Wiegman seria uma das grandes responsáveis pelo sucesso que manteve o clube auriverde investindo no futebol feminino - até hoje, aliás.
Sob seu comando, o time conquistou uma Eredivisie Vrouwen (2011/12), e foi bicampeão da Copa da Holanda (2011/12 e 2012/13). Pela longa trajetória no futebol, jogando e comandando, Sarina ainda recebeu importante prêmio em 2012, sendo condecorada como "cavaleira embaixadora" ("bondsridder") pela federação holandesa. Finalmente, a ex-volante ganhou a grande chance em 2014: deixou o ADO Den Haag e foi contratada pela KNVB para ocupar dois cargos. Seria auxiliar de Roger Reijners na seleção feminina adulta, e treinaria a equipe sub-19 de mulheres. Assim, esteve na Copa de 2015, primeira aparição da Holanda numa Copa do Mundo.
Encerrada a fase de experiências, 2015 seria ano de aprendizados mais profundos. A ex-jogadora começou o curso da federação para conseguir a licença profissional da UEFA e poder treinar qualquer time europeu, de homens ou de mulheres - foi apenas a terceira mulher a fazer isso na Holanda, após Vera Pauw e Hesterine de Reus. Ainda naquele 2015, com Roger Reijners deixando a seleção após a Copa, Sarina chegou a ser escolhida como técnica interina, mas voltou a ser auxiliar em setembro, com a contratação de Arjan van der Laan para o comando das Leoas. Restou continuar o estágio no time masculino sub-19 do Sparta Rotterdam, ao lado do treinador dinamarquês Ole Tobiasen. Enfim, Sarina conseguiu o diploma de treinadora profissional. Conseguiria muito mais a partir de 2016.
A grande chance - aproveitada
Sob Arjan van der Laan, a seleção feminina da Holanda patinava. A situação era até normal, mas poderia estar bem melhor do que prometia após a participação na Copa de 2015. No pré-olímpico feminino, no começo de 2016, a Holanda perdera a vaga nos Jogos do Rio de Janeiro para a Suécia (futura medalhista, ganhando a prata no futebol feminino, aliás). Uma sequência de quatro derrotas em amistosos - Estados Unidos, Bélgica, Alemanha e Inglaterra - significou o fim da linha para Van der Laan, demitido em dezembro de 2016. Sarina voltou a comandar a seleção interinamente, e aí as jogadoras da seleção holandesa pediram: ela merecia a efetivação como técnica. Assim foi feito: em janeiro de 2017, Wiegman foi efetivada como treinadora das Leoas Laranjas.
Havia muito trabalho pela frente: afinal, viria uma Euro feminina em 2017, com a Holanda como país-sede. Sarina ganhou uma comissão técnica bem fornida para comandar - tendo como auxiliar um nome experientíssimo: Foppe de Haan, muito querido por torcida e imprensa, hábil treinador (fora o técnico da seleção masculina sub-21 bicampeã europeia, em 2006 e 2007). A partir daí, a técnica pôde impor seu comando. Seu estilo preferido de jogo, se valendo de contra-ataques rápidos a partir de cuidados na defesa.
E a Euro chegou. Sarina teve problemas internos durante o torneio. Ainda na fase de grupos, a zagueira e capitã Mandy van den Berg se lesionou, sendo substituída por Anouk Dekker. Van den Berg se recuperou no decorrer da Euro, quis voltar às titulares, mas Sarina preferiu manter o time que evoluía e terminaria campeão europeu. Van den Berg se irritou: até teve a chance de erguer o troféu da Euro com Sherida Spitse, a capitã em campo, mas desde ali teve seu espaço diminuído na seleção da Holanda. Até fez as pazes com a técnica, mas nunca mais voltou a ser convocada desde então. Era apenas um arranhão, num feito histórico. Sarina Wiegman se tornara o segundo nome da história do futebol holandês a levar a seleção a um título, além de Rinus Michels com os homens, na Euro 1988. Façanha tão grande que seu nome virou favoritíssimo a alcançar o que alcançou no fim do ano: o troféu de melhor treinadora do mundo em 2017, segundo a FIFA.
Em meio a treinos com a seleção, Sarina Wiegman recebeu seu prêmio da FIFA como melhor treinadora do futebol feminino em 2017 (Alexander Hasselstein/FIFA/Getty Images) |
Desde então, Sarina virou quase um oráculo. Tem seu comando quase fora de questão na seleção feminina. É voz ativa nos destinos do futebol das mulheres dentro da Holanda - em entrevista no fim do mês passado, ao diário Algemeen Dagblad, já anunciou sua oposição à formação desenfreada de equipes femininas nos clubes da Eredivisie ("Uma Eredivisie feminina com dezoito times? Que besteira. É o pior que podemos fazer nesse momento. Não há potencial. Pode até haver mais adversários, mas isso não aumenta o nível técnico") e também à separação de equipes masculinas e femininas ("É muito tentador dizer que meninos jogam nesse time e meninas jogam naquele time. Nada disso: olhem para a idade, a ambição, o nível, a motivação. Até os 12 anos, as crianças precisam se divertir, precisam jogar juntas"). Uma boa campanha holandesa na Copa só aumentará a respeitabilidade que Sarina Wiegman conquistou no futebol feminino holandês. Jogando e treinando.
Ficha técnica
Nome: Sarina Glotzbach-Wiegman
Data e local de nascimento: 26 de outubro de 1969, em Haia (Holanda)
Clubes como jogadora: KFC '71 (1987 a 1988), North Carolina Tar Heels-EUA (1989 a 1990) e Ter Leede (1994 a 2003)
Clubes como treinadora: Ter Leede (2006 a 2007), ADO Den Haag (2007 a 2014), Holanda (2014 a 2016, como auxiliar; 2015 e 2016, como interina; e 2017, como treinadora)
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